Mestre Aurélio em Terras Grapiúnas

            

                     Cyro de Mattos




Em janeiro de 1990, escrevi  no “Jornal de Letras”,  editado por Elysio Condé, no Rio de Janeiro, que o vocábulo grapiúna  vinha registrado no  Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, primeiramente de maneira equivocada, a seguir  de forma imperfeita e restrita. Mestre Aurélio informava que grapiúna significava “a alcunha que  os sertanejos dão aos moradores da capital” (pág. 885). No verbete assinalava que grapiúna é o ilheense, citando trecho do romance Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado, para exemplificar o uso corrente do termo aplicado  aos que nasceram em Ilhéus.Conforme o trecho do romance: “Chegavam os estrangeiros e em pouco eram ilheenses dos melhores,  verdadeiros grapiúnas plantando roças.”
Mostrei no meu artigo  que, constituída dos elementos Ig (água), Cará (ave) e Una (azul-negro), segundo Teodoro Sampaio,  usada pelos índios da região cacaueira da Bahia, presume-se que no início a palavra grapiúna era “graaiúna”. Significava uma pequena ave preta que vive às margens do rio, conhecida até hoje em linguagem popular como “viuvinha”.  O escritor e editor Gumercindo Rocha Dórea, grapiúna nascido em Ilhéus, radicado há muitos anos em São Paulo, explica, na apresentação do meu livro “Cantiga Grapiúna”, que o elemento seria introduzido provavelmente por uma questão de eufonia, salientando que grapiúna também pode ter sua origem na expressão indígena igarapé-una, que quer dizer riacho preto, pequeno curso d’água muito encontrado nas fazendas de cacau e nas matas do sul da Bahia.
Em sua evolução semântica, perdendo a vogal inicial, grapiúna passou a significar os que vieram para o sul da Bahia no período do desbravamento e povoamento. Grapiúna assim diz respeito a uma civilização forjada no sul da Bahia por homens simples. Com o machado e o facão foram derrubando  as matas, penetrando a selva hostil, fundando vilas e pequenas cidades, estabelecendo na passagem dos anos uma forma singular de vida, proveniente da implantação da  lavoura do cacau.
Comentei que a saga de cobiça e morte no período da conquista da terra serviria  aos romancistas Jorge Amado e Adonias Filho como matéria ficcional, fazendo os dois fundadores dessa literatura regional, no melhor sentido, com  que a paisagem, psicologia, fala  e valores do homem grapiúna continuem vivos enquanto viva for a língua portuguesa.
Da epopéia do desbravamento, povoamento, da conquista da terra no sul da Bahia surgiu a civilização do cacau e dela uma literatura que prosseguiu valorizada  através dos livros de Sosígenes Costa, Jorge Medauar, Telmo Padilha, Florisvaldo Mattos, Valdelice Pinheiro,  Hélio Pólvora, Euclides Neto e James Amado. Poetas e prosadores  que viriam se juntar aos nomes poderosos de Jorge Amado e Adonias Filho, para tornar mais amplos  os caminhos das letras grapiúnas no corpo literário brasileiro. . Esses escritores nascidos no sul da Bahia  tematizam o homem grapiúna em suas obras, transfiguram no silêncio da criação literária o homem do cacau. Com sua coragem, seu amor, sua solidão, sua vingança, sua dúvida, sua condição social, sua verdade. São escritores do ente humano revestido de um modo de vida determinado na região cacaueira da Bahia. Porque ali nasceu, criou raízes, deu nome a seres,  coisas e ali morre.
Aleguei no meu escrito que  iam  a 770 os autores, entre clássicos e modernos, e a 1610 os livros registrados por Aurélio Buarque de Holanda Ferreira  no seu Novo Dicionário da Língua Portuguesa. E, entre os autores do sul da Bahia referidos,  figuravam Jorge Amado com Dona Flor e Seus Dois Maridos, Farda, Fardão, Camisola de Dormir,  Gabriela, Cravo e Canela,  Os Velhos Marinheiros, Jubiabá e  Tieta do Agreste;  Adonias  Filho com Léguas da Promissão e Luanda Beira Bahia; Jorge Medauar com Água Preta; Hélio Pólvora com A Força da Ficção; Cyro de Mattos com Os Brabos e Sabóia Ribeiro com  seus Contos do Cacau.
Argumentei então que, se no dicionário maior  de nossa língua, ao lado dos romancistas Jorge Amado e Adonias Filho, outros escritores nascidos na região cacaueira da Bahia  eram  citados nos verbetes, fonte não faltou para que  o vocábulo grapiúna fosse registrado pelo dicionarista  de maneira correta.
Concluí meu texto assegurando que é  chamado de grapiuna o homem nascido nas terras do cacau da Bahia, outrora ricas,  ou aquele que radicado no seu  complexo cultural  identifica-se com um modo singular de vida, formado  por fatores de natureza histórica, social, econômica, política, ecológica, lingüística e artística. Ressalte-se a bem da verdade  que a civilização cacaueira baiana acha-se modificada atualmente em sua paisagem típica e no perfil do homem do cacau, dado que os elementos culturais foram alterados sensivelmente de uns anos para cá.
Vocábulo que vem do tempo da conquista da terra, demonstrei que grapiúna nada tem a ver com “a alcunha que os sertanejos dão aos moradores da capital”, como vinha registrando  mestre Aurélio Buarque de Holanda Ferreira  em seu tão importante Novo Dicionário da Língua Portuguesa.
Tomo conhecimento agora que o Novo Dicionário da Língua Portuguesa, edição de 1999, 4ª impressão, anota  no verbete do vocábulo grapiúna o seguinte: “De origem tupi.1) Habitante da região cacaueira do sul da Bahia. 2) Diz-se dele, de seu modo de vida, de seus hábitos etc. “Ficcionistas e poetas do homem grapiúna, do homem do cacau, daquele ser humano que tem um modo  singular de vida, porque ali nasceu, ali criou raízes e ali morre.” Cyro de Mattos, em Jornal de Letras, janeiro de 1990. 3) Diz-se dessa região do sul da Bahia.”
        Nada mais acrescento  sobre o assunto, a não ser louvar mestre Aurélio Buarque pelo atual verbete do vocábulo grapiúna,  sem equívocos, neste dicionário esplêndido da nossa língua