PALESTRA NA UNIME – 26 DE AGOSTO DE 2015

                   
ASPECTOS POLÊMICOS DA APOSENTADORIA COMPULSÓRIA
                                                                  Sônia Carvalho de Almeida Maron*


                    

Somente o ex-professor, aposentado compulsoriamente por ter atingido a idade limite dos 70 anos, pode avaliar o que significa o chamamento do ex-aluno que reverencia o passado, buscando o apoio da mão que sempre esteve estendida para transmitir a experiência e a sabedoria que somente a idade e a vocação do docente que ingressou na sala de aula despojado de qualquer vaidade ou projeto pessoal pode oferecer. Aqui estou a convite de dois ex-alunos:  Paulo Afonso Andrade Carvalho e Guilherme Scoffield. É impossível declinar o convite de ex-alunos, por mim considerados como uma categoria especial de filhos.

Usando a lição de Karl Engish, sempre procurei transmitir aos meus alunos que “um direito justo faz parte do sentido do mundo”. E continuando a repetir o pensamento do grande mestre alemão, lembraria suas palavras em Introdução ao Pensamento Jurídico, Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 6 ed. p. 12:

“As razões deste desinteresse do leigo pelo Direito e pela ciência jurídica são fáceis de descobrir. Com efeito, nenhum outro domínio cultural importará mais ao homem do que o Direito. Há na verdade pessoas que podem viver e vivem sem uma ligação íntima com a poesia, com a arte, com a música. Há também, na expressão de Max Weber, pessoas “religiosamente amusicais”. Mas não há ninguém que não viva sob o Direito e que não seja por ele constantemente afetado e dirigido”.

E nesse mundo do Direito conhecer e valorizar o passado é essencial. É o único meio que temos de construir uma nova história, sem repetir os mesmos erros. Aos mais velhos ficou reservada a tarefa de corrigir a trajetória dos jovens, quando eles permitem, apontando atalhos que suavizem a caminhada, evitando descaminhos ou animando-os a enfrentar novos desafios. E aqui estou, com o mesmo carinho, gratificada com o convite e convencida que valeu a pena, durante 16 anos, viajar em ônibus-leito todos os fins de semana, para encontrá-los na sala de aula sexta-feira à noite e sábado pela manhã. Promovida para a entrância especial (denominação da época), minha prioridade era voltar a Itabuna para ministrar aulas e receber o salário inferior ao da minha cozinheira (dois salários mínimos, transporte, cesta básica, medicamentos, consultas médicas particulares quando necessário, presentes nas datas comemorativas etc. etc.) À época o salário do professor assistente não alcançava o salário base e as vantagens elencadas da minha “chefe de cozinha”.

Encontramos bacharéis em Direito dos Ministros aos advogados, serventuários da justiça com graduação em Direito, detentores de cargos efetivos ou comissionados nos três poderes, empresas, instituições diversas, sociedade organizada, formadores de opinião nos órgãos de comunicação da imprensa livre e independente. É significativa a responsabilidade que assumimos na vida social. Não seria exagero reconhecer que o mundo não seria o mesmo sem a nossa efetiva participação. Fazendo coro à afirmação de Karl Engish,  fazemos parte do sentido do mundo. Como agentes transformadores, como fiscais da lei, como aplicadores e intérpretes da lei, como peças fundamentais na teoria dos “pesos e contrapesos”, na relação independente e harmoniosa com os poderes irmãos.

O tema que me foi destinado ( a PEC da Bengala) conduz ao túnel do tempo. Estamos na década de 70. Em 1974, primeiro vestibular da Federação das Escolas Superiores de Ilhéus e Itabuna, instituição particular que reuniu as faculdades isoladas de Direito, em Ilhéus e Filosofia, Economia e Administração, em Itabuna. Enfrentei o primeiro vestibular da FESPI aos 33 anos, levando como bagagem o curso médio de magistério, salientando que minha formação, desde a alfabetização ao curso médio, foi no Ginásio Divina Providência, primeiro desse nível na região sul da Bahia. Para discutir a aposentadoria compulsória preciso percorrer o caminho trilhado, dificuldades enfrentadas e mãos estendidas que encontrei, muitas abrindo portas e afastando obstáculos do caminho.

À medida que os meses passavam, aumentava minha paixão pela Ciência do Direito e o fascínio do estudo conduzia a leituras intermináveis de Filosofia, Sociologia, Introdução ao Direito, Introdução à Economia, Teoria Geral do Estado em livros generosamente emprestados pelos professores, alguns meus amigos a exemplo de Valdelice Pinheiro, Flávio Simões Costa, Wilson Rosa, Altamirando Marques e outros que se tornaram amigos como Francolino Neto, Érito Francisco Machado, Acioly da Cruz Moreira, Antonio Raymundo Laranjeira, José Joaquim de Almeida Netto. Eu precisava estudar por motivos pessoais graves e estudava não pela nota: precisava do conhecimento como arma para enfrentar a vida. Foi fácil conquistar a confiança dos professores através das notas; os mais sensíveis logo perceberam que eu não podia comprar livros. E nunca é demais tornar público o agradecimento àqueles que simbolizaram a luz que encontrei em meu caminho.

Optei por um concurso público e até hoje acho que fiz a escolha acertada.  Apesar de aposentada, ainda guardo do magistrado a mesma imagem transmitida por Piero Calamandrei em seu livro Eles, os Juízes, vistos por nós, os Advogados, Ed. Clássica, 7ª ed. p. 31:

“Quando te encontro no meu caminho e me curvo com respeito, há no meu cumprimento o calor do meu fraternal reconhecimento. Sei que és a guarda e a garantia de tudo quanto de mais caro tenho no mundo. Em ti saúdo a minha honra e a minha liberdade.”

É uma imagem romântica, dirão vocês. Mas eu sou uma romântica incurável quando o assunto é o Direito, as pessoas que se dedicam ao estudo dos seus princípios e normas e seus intérpretes e aplicadores. Antes da análise que pretendo fazer da emenda constitucional que dilatou o tempo de serviço dos membros da Suprema Corte, que vai balizar, com certeza, as reivindicações dos Tribunais e Juízes do primeiro grau, devo confessar que a minha esperança é que se estenda notadamente ao magistério superior.

Quero ressaltar que não é pelo fato de ser uma velha senhora que defendo a extensão do tempo de serviço de determinadas categorias profissionais por mais cinco anos. E estou muito à vontade em meus argumentos porque deixei a carreira de magistrada do Tribunal de Justiça da Bahia ao completar o tempo de serviço exigido de 30 anos, averbando tudo que podia ser averbado. E o fiz exatamente quando meu nome passou a figurar na lista dos juízes aptos a disputar o quinto constitucional, já convocada para substituir no Tribunal. Saí voluntariamente, por escolha e convicção de que meu tempo havia chegado ao limite, ao meu limite. Já a aposentadoria como professora da UESC efetuou-se por imposição da lei e foi dolorosa, deprimente. O professor, aos 70 anos, tem muito da sua experiência para transmitir. O afastamento imposto atinge como se fosse um castigo. Não exagero em afirmar que depois de uma vida dedicado ao ensino, à formação de novos profissionais, aquele que passa a receber a alcunha de “septuagenário” tem a sensação que se transformou, de um dia para o outro, num traste velho atirado ao lixo em uma faxina. E como se não bastasse é remetido a outra categoria denominada “inativos”. Como se a “ação”permanente em que sempre viveu, compulsóriamente  passasse a “inação”.

A elevação da idade para aposentadoria compulsória é assunto recorrente no legislativo nacional, várias vezes discutido e votado sem sucesso. Retornou à pauta recentemente no primeiro semestre do corrente ano, de forma isolada, através da PEC 42/2033, de autoria do Senador Pedro Simon. Aprovada, converteu-se na Emenda Constitucional nº 88, publicada no Diário Oficial da União de 08.05.2015 alterando o art. 40 da Constituição.

A decisão do Senado fez nascer duas correntes diante do fato consumado: os mais rigorosos entendem a emenda claramente inconstitucional e muitos argumentos partidos de juristas e magistrados destacam cinco aspectos negativos na modificação do critério. Em primeiro lugar, é apontada a possibilidade de estagnação da jurisprudência dos tribunais superiores; em segundo, viria o engessamento das carreiras; em terceiro, o aumento das despesas da previdência por fomentar as aposentadorias voluntárias; a seguir, o obstáculo ao desenvolvimento gerencial de órgãos do Poder Judiciário e Ministério Público e, como quinta hipótese de influência negativa, impediria a renovação dos quadros do Judiciário e do Ministério Público, em consonância com o sistema republicano. Destaca-se, também, o engessamento nas cúpulas, cujo efeito direto será retardar ou inviabilizar a perspectiva de progressão dos juízes para os graus mais elevados. A consequência seria o desestímulo nas instâncias inferiores pois seus titulares ficariam longos anos com a carreira estagnada; o jubilamento tardio prejudicaria alguns, na faixa dos 60 anos, experimentados na carreira e impedidos de prestar colaboração aos órgãos revisores.

Os argumentos favoráveis apontam para o aumento da perspectiva de vida da população brasileira e a perda de grandes talentos da magistratura nacional, no auge da experiência, com enorme potencial e maturidade. Esses magistrados são obrigados a se retirar da carreira impedidos de prestar inestimável colaboração à sociedade. Para ilustrar, tomemos o exemplo do ex-presidente da Suprema Corte, Ministro Carlos Ayres. Quem assistiu as sessões de julgamento da Ação Penal 470, o lamentável “Mensalão”, teve a oportunidade de comparar o desempenho do Ministro Carlos Ayres, erudito, sereno, equilibrado, impondo respeito e respeitando a liturgia do cargo, comparado ao irrequieto Joaquim Barbosa, que o sucedeu. Passamos pelo constrangimento de ouvir e ver, pelo Canal fechado da TV Justiça, bate-boca entre o presidente do poder maior e o advogado de um dos réus. Duvido muito que fato tão desagradável acontecesse sob o comando do sergipano.  A impressão é que o Ministro Joaquim Barbosa tinha necessidade de exacerbar a imparcialidade exigida para afastar a suspeita de ligação com o governo federal que o indicara. É mera hipótese, é claro. Creio mais no temperamento explosivo e intolerante do ministro, inadequado ao cargo que exige absoluto controle das emoções.

Ninguém em sã consciência trocaria os votos de Celso de Melo, Marco Aurélio de Melo, Gilmar Mendes pelos argumentos de Dias Tófoli nas sessões do pleno do STF. A politização do Supremo Tribunal Federal estava na iminência de acontecer em um momento crucial para o país, o pior momento para indicações seguidas de novos nomes para vagas prestes a surgir. O período atravessado pelo país é de extrema gravidade, com a falência de valores éticos e morais, sem falar na segurança jurídica essencial à tranquilidade dos cidadãos e indispensável à paz social.

O engessamento da carreira como prejuízo causado pela nova emenda constitucional e a “oxigenação” dos tribunais como vantagem estão entre os principais argumentos usados pelos defensores da aposentadoria compulsória aos 70 anos. Não se pode esquecer que  sendo muito forte a dose de oxigênio, pode comprometer os pulmões e até mesmo prejudicar gravemente o tecido pulmonar levando à morte. É o perigo que correm muitos Tribunais excessivamente oxigenados...

Seria ingenuidade afirmar que a emenda constitucional não obedeceu às circunstâncias atuais enfrentadas pelo país. Com o desgaste dos poderes executivo e legislativo exibidos ao país,  ao vivo e a cores,  como quadrilhas organizadas para saquear os cofres públicos, não seria o melhor dos momentos para fragilizar, ainda mais, o poder que resta e, apesar de casos pontuais, transmite relativa segurança e esperança de correção de rumos. Em momento de dúvida e insegurança, crise econômica e política, valores morais e éticos agonizando, a dose seria muito forte se cinco ministros do Supremo confiáveis e cultos, fossem substituídos por nomes escolhidos pela chefe de um governo com índices altos de rejeição. Existem fases da história de um povo nas quais Direito e política se transformam em gêmeos siameses. “Para bem de todos e felicidade geral da nação”, parafraseando D.Pedro I no “Dia do Fico”.

Inegavelmente somos um país que acredita na lei como uma panacéia capaz de curar todos os males: da peste bubônica da Idade Média ao câncer da atualidade. A lei, para nosso poder legislativo, é o santo remédio capaz de curar todas as mazelas da sociedade. A lei faz e desfaz. Afinal, a lei sempre foi o instrumento preferido dos poderosos de plantão. Principalmente eles, os poderosos, ignoram que a lei (principalmente a lei penal) é a última ratio. O tempo, este sim, é o supremo juiz, vai curar as feridas, apontar e corrigir os erros. E o próprio Supremo será incumbido de cumprir o seu papel no momento em que estiver investido da prerrogativa de pesar e medir os desvios de conduta de quem quer que seja, seja qual for o Poder. É a materialização da teoria dos pesos e contrapesos, assegurada pela democracia. Sem esquecer da função de uniformizador da jurisprudência e supremo árbitro dos conflitos. Diante de uma  Suprema Corte digna, incorruptível, corajosa e imparcial,  tudo volta à paz da segurança jurídica.   

Resumindo, o melhor é ficarmos com a mensagem de Eduardo Couture, no 4º Mandamento do Advogado:

“Luta. Teu dever é lutar pelo Direito, mas no dia em que encontrares em conflito o direito e a justiça, luta pela Justiça!”                  

                                                                        

*Juíza de Direito do TJBA aposentada 
Presidente da Academia de Letras de Itabuna - ALITA