Uma
leitura das representações do imaginário do cacau na obra de Jorge Amado, necessariamente iria buscar ver aspectos
simbólicos do mundo, interpretáveis na produção ficcionalizada. Se fosse essa a
minha abordagem da ficção amadiana, trataria dos perfis humanos, das paisagens, da ambiência, da história.
Focaria as lutas pela terra, o cenário
humano de coronéis, jagunços, trabalhadores rurais, prostitutas; evidenciaria as etnias, suas singularizações, a
hibridização grapiúna. Os sistemas de
representação da cultura seriam operados por meus esquemas de interpretação. As
dimensões dessas representações evidenciariam as diversas inscrições culturais
através de imagens e discursos sobre o mundo. E, assim, interpretaria a saga cacaueira, na sua representação, em: Cacau, Terras do Sem Fim, São Jorge dos Ilhéus,
Gabriela Cravo e Canela, Tocaia Grande, A descoberta da América pelos Turcos.
Mas
não é de representação na obra literária que vou tratar. Observo
e entendo algumas proposições em
discutir Linguagens e Representações da obra de Jorge Amado e, não, na.
Saliento, por isso, que aqui vou abordar linguagens sobre a obra; discutir
representações, leituras, sobre a obra. Nesse raciocínio, acrescentando a idéia
de apresentação, falarei DE LINGUAGENS e APRESENTAÇÕES/
REPRESENTAÇÕES DA OBRA DE JORGE AMADO. Antes, porém, como forma
de situar a minha fala, farei breve reflexão sobre as palavras-chave linguagens e representações, para somente depois me fixar no entendimento de apresentações.
1- De
certo modo vivemos hoje uma prática transdisciplinar que se dá em termos de uma
crítica das disciplinas, que se ampliaram nos últimos tempos em vários enfoques:
abordagens sobre minorias, questões
identitárias, estudos pós-coloniais, abordagens
de testemunho, questões de oralidade - os estudos derivados da virada culturalista. Também
devido à pulverização dos saberes e à confluência de linguagens, as abordagens
passaram a abarcar novos discursos como
os relacionados com a pós-escrita alfabética, com as teorias da sociedade
midiática que está se gestando em meio à onipresença de imagens.
Hoje,
com a sintetização da vida, o homem refaz sua auto-imagem e ele o faz, em parte,
ainda por meio da literatura e das demais artes. No momento, para termos uma idéia de como a nossa
sociedade funciona, basta lembrarmos como os limites do humano misturaram-se
com os das máquinas; nossa memória passou para a era computacional e, em seguida,
para a ciber-memória. Essas são paisagens imagéticas que agora determinam nossa
cultura.
Essas
questões exigem que refaçamos os nossos modos de abordar a literatura e os
fatos culturais, pensando a relação entre a palavra e a imagem. Daí a
necessidade que sentimos nos últimos anos de nos aproximar de outras
disciplinas, para tentar dar conta das novas exigências de quem lida com a
literatura. Assim, temos visitado
autores da filosofia, que nos trouxeram questões atuais e nos ajudam a
rever problemas, temas e modos de abordagem; consideram a condição humana
enquanto as formas de vida que o homem impõe a si mesmo para sobreviver (GADAMER,
2005; DELEUZE, 1998; FOUCAULT, 1999; RICOEUR,
2007; ARENDT, 2007); aprendemos a não
pensar mais a história de modo linear, segundo escolas e épocas (LE GOFF, 1988;
NORA, 1997); reconhecemos o texto literário da perspectiva de uma antropologia literária (ISER, 1996); ultrapassamos
a produção de sentido para uma
proposição, também, de produção de presença (GUMBRECHT, 2005, 2010).
E ainda, caminhamos com aqueles que
discutem as identidades nas suas várias nuances e dinâmicas (HALL, 2000; BHABHA,
1998; CASTELLS, 1999; CANCLINI, 2000; BAUMAN, 2001). Buscamos pensar cada fato da cultura como pertencente a
uma complexa rede simbólico-cultural e de poder (BOURDIEU, 2003; GEERTZ, 2008;
FOUCAULT, 1979) e, também, extrair esse fato de seu contexto usual para
iluminá-lo com uma nova luz, que revela outras leituras, outras linguagens (BURKE,
2005). Buscamos dialogar com a web,
as ferramentas computacionais e as imagens (LÉVY, 2001; SANTAELA
e NOTH, 1999).
Não
se trata mais de procurar limites canônicos; muito pelo contrário, passamos a
valorizar a ruptura das fronteiras entre as disciplinas e, conseqüentemente,
entre as mídias. O boom tecnológico e
midiático do final do século 20 não dá mais lugar para um tratamento estanque das
mídias ou das linguagens.
Da
mesma maneira, além da literatura como representação, com a valorização tecnológica e a questão das
pessoas estarem frequentemente on line,
podemos constatar a literatura como apresentação;
nesse caso, cresce a tendência
para se ver a literatura, também, como processo. A apresentação passa a ser parte integrante da identidade
do homem moderno: ele como que precisa não somente da literatura, mas da arte
em geral, para expressar tudo aquilo que a vida social lhe cobra em tempo real,
acontecendo. Assim, a literatura muitas
vezes produzida em tempo real, como processo (realizada, por exemplo, on line, através de blogs e outras ferramentas
proporcionadas pela internet), configura-se uma extensão simultânea de nossas vidas,
em apresentação. Tal ultrapassagem,
certamente, não desqualifica a idéia de representação do imaginário como
ficcionalizado; somente configura outra forma de processo literário,
concernente com os tempos atuais. Nesse
caso, a palavra literária, plurissignificativa, é acrescentada em dimensão,
quando se realiza no processo de produção, em
tempo gerundivo, de ação continuada:
apresentação. Seria
para além da representação do objeto
na literatura, a apresentação da palavra enquanto objeto. Recorrendo a poiética (TODOROV, 1980) enquanto
ciência que se ocupa do processo de criação/produção, seria considerar o surgimento de uma obra, também no que diz
respeito à sua apresentação, como
ato, conduta, ação em tempo presente.
Mas,
além disso, a recorrência a outras
linguagens é apresentação ou é interpretação de uma obra. Em outra linguagem
artística, ou mesmo em linguagem científica. Nesse caso, a obra sai do texto e
vai para a vida e se refaz em outra linguagem, inclusive a crítica literária. A
literatura, assim, é representação da
vida pelo simbólico; e apresenta-se à vida, em outras linguagens. Ou é apresentação quando o seu processo
criador ocorre interativamente, nos vários modos que as ferramentas da
tecnologia e da informática oportunizam (blogs,
twitters, sites, facebooks).
Nesse caso, o foco definidor do processo será o tempo.
Como dito,
a representação, fruto de momento
anterior, é pretérita; a apresentação, realizada em
acontecendo, é gerundiva, presente; ato,
processo.
2- Essas rápidas reflexões querem suscitar o debate
sobre as inúmeras possibilidades de se pensar, hoje, uma obra literária em
geral. Querem
também sustentar a minha referência, aqui pontual, de formas de linguagens e apresentações/
representações da obra de Jorge
Amado. As linguagens, em suas várias expressões ou funções, desde as artísticas à linguagem científica e à jornalística; as
apresentações/ representações modos de falar da obra amadiana, como
solicita esta mesa.
Sobre apresentações,
em relação a outras várias linguagens,
podemos enumerar: a telenovela, o
teatro, a escultura, a música, a pintura,
caricatura. Sobre representações da obra (o interpretado, simbólico) cinema, ensaios, estudos, palestras, artigos,
dissertações, teses...
Especialmente, quando se comemoraram os 100 anos de vida
do escritor grapiúna, as apresentações/
representações da sua obra se multiplicaram em linguagens. Além de
relançamentos de edições pela editora Companhia das Letras (uma caixa que reúne
os quatro livros das mulheres de Jorge, além de edições especiais, como o livro
inédito de cartas que Jorge trocou com Zélia Gattai), é de citar ainda: a
regravação da novela, Gabriela, Cravo e Canela; o filme Capitães da Areia,
da cineasta e neta do escritor Cecília Amado; a peça Dona Flor e seus dois
maridos, fora exposições, músicas, esculturas... Dentre muitas outras
coisas aqui não enumeradas, cabe ainda lembrar que, naquele ano, Jorge Amado
foi tema de carnaval em Salvador; e foi homenageado com o samba-enredo baseado
em suas obras pela escola Imperatriz Leo poldinense,
do Rio. A Bahia esteve em festa ao longo
de todo aquele ano do aniversário dos 100 anos de Jorge Amado. Afora as
comemorações pontuais, no mês de agosto do seu aniversário, em Ilhéus, foi
realizado o Festival Amar Amado, com palestras,
encenações, teatro, música, oficinas...
Nesse mesmo período, em Salvador,
onde ele viveu grande parte da sua vida, aconteceram exposições, palestras,
espetáculos. E foram inúmeros os colóquios, congressos,
seminários, conferências; e artigos, comunicações.
Mas na terra de Jorge Amado a importância do escritor,
além de tudo, interfere no desenvolvimento local. Aqui fica evidente a afirmação
que fiz (SIMÔES, 1998) do entendimento da literatura como influenciada e
influenciadora da história. O icone é explorado em linguagens e apresentações/ representações,
também.
As apresentações e representações da obra relacionam
cacau e literatura, numa perspectiva do trânsito turístico. O escritor é potencializado como atração para
a região. É forma de seduzir o leitor amadiano que resolve um dia visitar
as terras ficcionalizadas e se torna turista nas Terras do Cacau, onde convive
com os seus costumes, o seu patrimônio, a sua história.
Nas terras do cacau, o ícone Jorge Amado está por toda parte. O habitante
local busca explorar outras linguagens em valorização da obra amadiana, fazendo
a sua cidade re-ler a literatura através de apelos semióticos. A obra é re-apresentada
através de linguagens várias: teatro, dança, música, cinema, fotografia,
escultura, pintura, vídeos-documentários. Quem visita o Vesúvio, pode tirar uma
fotografia com o Jorge sentado numa das
mesas. A antiga casa do escritor, hoje Fundação Cultural, abriga exposição das edições dos seus livros; também
algumas peças dos seus pertences pessoais.
O Bataclan, de portas abertas, é espaço cultural representando a obra. Para o conhecimento da cidade de Ilhéus pelo
turista, foram definidos dois circuitos: o roteiro Cravo e o roteiro Canela. Mas é também verdade que, por vezes, sentindo-se um
tanto dono da "marca", o local, em exploração banalizadora, expõe a
imagem de uma Gabriela em emissoras de
rádio, ônibus urbano,
lanchonetes, pousadas... Coloca o nome em tipos de sanduíche, sorvetes,
chocolates; busca, dessa forma, atrair pela beleza, sensualidade, cheiro (de
cravo e canela), instituindo o "tipo" Gabriela, vinculado ao tempo
áureo do cacau.
3 – De
tantos exemplos incontáveis, aqui e no mundo, sobre as linguagens e apresentações/
representações da obra amadiana, focarei
o trabalho do Grupo de pesquisa Identidade Cultural e Expressões Regionais - ICER,
desta Universidade Estadual de Santa Cruz.
São leituras da obra que buscam contribuir para a visibilidade da
cultura da região, provocadora do trânsito turístico, que incrementa o desenvolvimento local.
A
matriz teórica da pesquisa, além das mencionadas, sustenta-se na reflexão de que leitores de
livros que abordam a cultura local são instigados a se tornarem turistas, isto
é: inicialmente são leitores – turistas das obras literárias; depois,
tornam-se turistas - leitores de cidades. (SIMÕES, 2002).
A
reflexão suscitada pela ficção sobre a cultura local, suas tradições e saberes
tem contribuído para a identificação do perfil cultural da região.
No
diálogo entre linguagens, são abordadas várias representações sociais presentes
na obra amadiana: festas populares -
carnaval, S. João, ternos de reis, procissões; artesanato; feiras populares; o
imaginário das águas, gastronomia, dentre outros. Buscamos
identificar, na fala da comunidade local, nos hábitos da tradição, nos costumes
gastronômicos, no saber dos mais velhos, nas especificidades de cada etnia que
forma a nossa região, aspectos culturais identitários. No conhecer os
procedimentos do fazer uma comida, na
recomendação de um mais velho sobre os fazeres, saberes, causos, lendas,
hábitos, festas, ação da cultura através de feiras, comercialização dos
produtos, receituários... Dessa forma, observamos tradições e hábitos; manifestamos opiniões,
idéias e atitudes das comunidades locais, relendo a literatura sul baiana, com
ênfase na obra de Jorge Amado. Assim foram produzidas leituras e
interpretações da obra amadiana, em linguagens
diversas. Representações em forma de
documentários, ensaios, artigos, antologias; e apresentações,
através de exposições fotográficas, encenações, palestours, palestras.
Aqui
somente cito exemplos. Prefiro sugerir que folheiem as páginas do Esteja a Gosto – viajando pela Costa do
Cacau em Literatura e Fotografia (2ªed, 2011), livro que faz conversarem as
linguagens literária e fotográfica, onde a presença de Jorge Amado é central. Ou o Grapiunidades – fragmentos postais de um pedaço da Bahia (2011), livro objeto, que busca em linguagem fotográfica,
re-apresentar o cenas e paisagens locais, através de postais. Ou mesmo que assistam aos documentários realizados sobre o
nosso escritor maior - Um olhar sobre Jorge Amado (2005) ou Jorge Amado por Zélia Gatai (2010). Convido-os,
também, a tomarem conhecimento dos estudos reunidos nas antologias críticas - Identidade Cultural e Expressões Regionais
(2007) e Expressões Culturais, Literatura e Turismo (2011) - nas quais vários artigos tratam da obra
amadiana, desde uma abordagem de perfis, ambiências, personagens, questões
étnicas e identitárias às relações da obra e a sua repercussão para o turismo
local.
Referências:
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Roberto Raposo. 10º Ed. Rio
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