Introdução
Os velhos livros de culinária, antes
simples elenco de orientação para os cozinheiros, vêm tomando novos tons e
galgando um espaço de gênero, desde a última década. Sofisticando-se em sua apresentação visual,
além disso, eles inovam na sua estrutura
e trazem todo um relato sobre a
história dos ingredientes das receitas que apresentam,
despertando o interesse dos gourmets. Levam o leitor aos prazeres não só
do paladar, mas ao gosto da história e ao conhecimento das origens e qualidades
das especiarias que integram as orientações culinárias. Nessa linha, a interface entre a literatura
e a culinária se agudiza. Se antes tínhamos alguns romances que inseriam
receitas na sua narrativa, agora, além disso,
a culinária vai buscar nos romances o seu sumário de receitas. E a leitura da receita
remete ao imaginário ficcional que a originou, devido à presença de trechos da
obra ficcional inspiradora .
Muito oportuno para este momento quando a palavra de ordem é a
multiculturalidade, a leitura cruzada desses livros (ficcional e culinário),
conduz o leitor a considerações
histórico-geográficas, para o conhecimento de causas e efeitos, de influências
e de interferências, até mesmo, de poder.
A culinária mais característica de uma determinada região,
necessariamente, tem a ver com a sua história, com o processo de
dominação (ou não) pelo qual eventualmente
essa região passou; da relação entre conquistador e conquistado; com o
respeito a uma cultura local ou a uma cultura imposta pelo colonizador, pelo
conquistador, pelo coronel...
Não é à toa que Edward Said
ressalta o lugar do romance de ficção na história, fazendo a
sua tese básica a de que "as histórias estão no cerne daquilo que dizem os
exploradores e os romancistas acerca das regiões estranhas do mundo; elas se tornam o método usado pelos povos
colonizados para afirmar a sua identidade e a existência de uma história
própria deles." (Cultura e
Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.13).
Essas considerações pretendem
justificar a abordagem que aqui
farei sobre o imaginário das especiarias
na Literatura Sul Baiana, mais
especificamente enfatizada na produção de Jorge Amado.
Os romances do ficcionista grapiúna
que levou para o mundo o imaginário baiano, e mais especificamente das terras
do Cacau - estão povoados de referências
culinárias. Tais referências sinalizam
os hábitos culturais e alimentares das
suas personagens, presentes praticamente em todos os livros do
autor. Em casos mais específicos, revelam
um fazer ficcional ligado à arte culinária, como é o caso de personagens como Gabriela (Gabriela, Cravo e Canela,
1958) e D. Flor (D. Flor e seus dois maridos, 1966). A primeira, em Ilhéus; a segunda, em
Salvador, notabilizam-se romanescamente por seus quitutes. Na medida em que a história alimenta a
literatura e a literatura interfere na história, esses romances traduzem o
imaginário do escritor grapiúna enriquecido das histórias do povo baiano e
contagiam leitores do mundo inteiro que vêm a Ilhéus para comer o bolinho da
Gabriela, no bar Vesúvio; ou vão ao Pelourinho conhecer o lugar onde D. Flor
fez manjares para Vadinho.
Para a abordagem que pretendo,
focalizarei um pouco da história da
vinda das especiarias para o Ocidente,
das acepções que recebe o termo hoje no Brasil,
da presença dessas especiarias (sentido restrito e largo) na literatura
sul baiana e, mais diretamente, em alguns dos livros de Jorge Amado.
1 - Falar culinária remete
imediatamente a especiarias. E quando pensamos
em especiarias, necessariamente, temos que entendê-las no universo das
plantas. Nesse sentido, integrando a flora, a sua classificação, a sua história, está ligada
aos costumes dos povos, à sua economia, desde épocas remotas, no
Oriente.
Como registra a história, desde a idade média, as especiarias eram
indispensáveis às vidas dos povos orientais,
dos imperadores ao povo, devido aos seus múltiplos benefícios quer na culinária, quer na medicina
e, até mesmo, em rituais religiosos.
Depois, transmitidos principalmente por árabes, esses produtos preciosos
chegam ao Mediterrâneo, são comercializados a peso de ouro e levados
ao Ocidente, através do porto de Alexandria, no Egito, inicialmente para
Veneza e Gênova. Perfumaria,
embalsamamento de múmias, conservantes de carnes são algumas das utilizações
das especiarias, às margens do Mediterrâneo, que a história registra como
primeiras.
Numa época em que somente eram
conhecidas a Europa, a Ásia e a África,
os povos europeus buscaram, nas
especiarias, forma de fortalecer a sua
economia. Daí que, à época, possuir reservas de especiarias era tão importante como possuir ouro. De tal sorte que essas reservas eram,
inclusive, deixadas, em testamento, como herança: pimenta, canela, noz moscada,
cravo da Índia, gengibre, dentre outras.
Cronistas da época relatam o fato, inclusive das dificuldades para a aquisição do produto. Camões, em Os Lusíadas, ao dizer da viagem
de Vasco da Gama, do seu objetivo de conquistar novas terras para Portugal,
expandir o império e difundir a fé cristã, fala, também, da importância das especiarias (Canto VIII,
77) para a motivação da viagem dos portugueses: "Enfim ao Gama manda
que direito/ às naus se vá, e, seguro dalgum dano,/ Possa a terra mandar
qualquer fazenda/ Que pela especiaria troque e venda" (1960: 268).
Os brasileiros, por conta da nossa
história, atrelamos o termo às causas (intencionais ou não) da
chegada dos portugueses ao Brasil. Por
isso, enquanto substâncias exóticas do Oriente,
imediatamente a palavra nos remete
aos séculos XV e XVI. Remete-nos à economia da época e aos costumes
alimentares daqueles povos e às viagens portuguesas. Remete-nos, inclusive, à
chegada das especiarias ao Brasil. José
Mendes Ferrão (Especiarias - Cultura, Tecnologia, Comércio. Lisboa:
IICT, 1993. p. 31) refere a estratégia do Rei D. Pedro II (1640) em tentar fazer do Brasil um pólo de
especiarias (gengibre, pimenta e canela), visando à comercialização com a
Europa.
2 - No universo da flora, sabemos
que a terminologia possui várias
acepções semânticas. Restritamente, o
termo está diretamente relacionado à história e aos temperos secos e exóticos
do Oriente, especialmente da Índia, conforme referido. No sentido largo, abarca outros produtos com características
similares, independentemente da sua origem oriental.
Nestas considerações introdutórias,
vale ainda dizer da classificação e
utilização das especiarias. Conforme Ferrão, a classificação considera: a origem, a parte utilizada da planta, e
os princípios ativos dominantes. A utilização
abrange além do aspecto culinário (mais comum e do qual aqui me
ocuparei) a perfumaria, a farmácia e medicina, a indústria de corantes, as
belas artes, as bebidas, a microscopia.
Por tais utilidades, torna-se facilmente compreensível a sua importância
na mercantilização e o seu valor econômico, durante a Idade Média.
Já no século XX (1908), a partir
do I Congresso Internacional para a Repressão de Fraudes, em Génève, o
termo fica entendido como " substâncias vegetais, de origem indígena ou
exótica, aromáticas ou de sabor ardente, picante, empregadas para realçar o
gosto dos alimentos ou adicionar, a estes,
princípios estimulantes que fazem parte da sua constituição" (Ferrão, 1993. p. 33).
3 - Tais observações histórias e semânticas são necessárias para definir a
minha abordagem enquanto especiarias utilizadas na culinária da região sul
baiana e presentes na sua literatura. É
no sentido largo que tomo o termo, apesar de ressalvar os aspectos
históricos relacionados à condição de berço do Brasil, da Região Sul baiana.
Para a abordagem a que aqui me proponho, dando um salto no tempo, pelo foco histórico, entendo a procedência da
especiaria (abrangendo os aromáticos, os picantes e os condimentos),
relacionada à formação do povo brasileiro, miscigenada por índios, negros e
brancos. Mais especificamente, circunscrita aos municípios do entorno sul
baiano, foco a nação grapiúna (nome dado ao habitante da região), sabidamente
prevalecente de influências de negros, sergipanos e turcos (termo regionalmente
assumido para generalizar origens síria, libanesa e turca, propriamente dita).
Quanto ao aspecto semântico, tomo o
termo, no sentido largo, com base no entendimento genérico da International
Standard Organization (ISO) de "produtos vegetais naturais ou suas
misturas, isentos de matérias estranhas, utilizados para dar sabor e aroma e
para temperar alimentos [...] termo aplicável tanto aos produtos inteiros como
depois de reduzidos a pó" (apud . Ferrão, 1993. p. 36).
Especialmente a canela e o cravo têm presença mais frequente e significativa na literatura. Envoltas em mito, as qualidades aromáticas da
canela vêm de tempos imemoráveis. Procedente do Ceilão, Alfredo Margarido
esclarece que a verdadeira canela muitas vezes foi confundida na
comercialização com outras, ditas falsas e de outras procedências: Canela da China, Canela da Batávia, Canela da
Indonésia, Canela de Padang (As
Surpresas da Flora no Tempo dos Descobrimentos. Lisboa: CNCDP/ Elo, 1994.
p. 60-62). Da mesma forma, o cravo,
também aromático, tem a sua procedência oriental; nesse caso, da Índia. A sua
árvore dá muita flor (primeiro branca, depois verde e, finalmente, vermelha, se
converte no cravo) (idem: 71). Apesar
das suas qualidades medicinais e
culinárias, foi certamente por seu aroma
que Sosígenes Costa refere o cravo nos
seus poemas, que a canela aparece em mingaus e mungunzás de vários outros
autores grapiúnas. Ou que Jorge Amado as tomou para caracterizar a sensualidade e faceirice da sua Gabriela,
personagem principal de uma das suas mais famosas obras: Gabriela, Cravo e
Canela. Como não poderia deixar de ser,
as especiarias, na literatura,
compõem as famosas receitas presentes na culinária das personagens. Foi a partir da obra ficcional de Jorge
Amado, que Paloma Amado Costa faz o seu
livro de receitas (A Comida Baiana de Jorge Amado ou O Livro de Cozinha de Pedro Arcanjo com as Merendas de
D. Flor. São Paulo: Maltese, 1994).
4 - Naturalmente que o assunto, no que se refere à literatura Sul
Baiana, está diretamente ligado às
condições históricas e geográficas da
região do seu entorno. Nesse sentido, é preciso, também, falar um pouco da história
dessas terras conhecidas como Região do
Cacau. Em Sul da Bahia: Chão de Cacau
(Rio de Janeiro: Civilização, 1976), livro no qual examina as
"contribuições culturais que acabaram por definir uma civilização baiana
do cacau", Adonias Filho, falando
de uma civilização regional, indica a sua área em 90.000km², abrangendo 89
municípios do sul do Estado da Bahia; segundo ele, "abrangendo duas capitanias hereditárias
- Ilhéus e Porto Seguro" - [que]
refletem muito da história brasileira" (1976: 13). Tal afirmação se justifica pelo fato de esta
ser considerada região berço do Brasil,
onde estão os marcos da nossa história (pelo menos do ponto de vista do
branco). Mas é também o próprio Adonias que, no mesmo ensaio, ao lembrar que
foi daqui que Caminha escreveu ao Rei D. Manuel dando notícias da terra
nova, observa que foi daquela época que
começou a devastação da nossa mata com a derrubada do pau-brasil. E ele afirma:
"essa árvore, inaugurando o comércio de exportação, abriu o ciclo agrícola
que caracterizará o sul da Bahia" (1976. p. 13). Assim, já dos primórdios,
tem início uma saga de violência e devastação no coração da Mata Atlântica,
onde a Região se situa.
O cacau, já referido na literatura desde 1817 quando Aires de Casal
menciona arroz, café e "algum cacau" na vila de Ilhéus, encontrando no clima quente-úmido condição
favorável ao seu cultivo, gradativamente leva a
região a uma condição de monocultura.
A saga de violência gerada pelo desbravamento, pela conquista da terra, faz
a história que alimenta o imaginário ficcional e artístico, base da cultura
regional. A Região toma forma e cor à
proporção que o cacau avança em paisagem - o derrubar da mata, o fazer as fazendas, a comercialização.
Depois, as pragas, as conseqüências da devastação. De tudo isso, nasce e torna-se forte uma
gente, com características culturalmente singulares, que
justificam a denominação de nação ou civilização do cacau. Conforme afirma Adonias, "uma região
rigorosamente caracterizada que se pode falar - a exemplo da civilização
paulista e fluminense do café, ou da nordestina da cana-de-açúcar e do couro -
em uma civilização baiana do cacau." (1976. p. 14).
Vale ressaltar, que a
condição mencionada não se deve somente
à situação agrícola (predominantemente cacaueira) ou à fauna, ao solo e ao clima
característicos, mas a toda uma complexa
condição sócio-histórico-cultural e econômica.
Tal condição é mesmo
forjadora de uma identidade
peculiar para o habitante da região. O
ter e o poder funcionam como molas da
cobiça, da vontade de conquista, elementos caracterizadores dos comportamentos
de uma época; uma época da pujança do cacau, que foi significativamente ficcionalizada, a ponto de
justificar a condição do ciclo do cacau no panorama da Literatura Brasileira
dos anos 30. Depois, pelo menos, até os
anos oitenta, quando tem início a crise da lavoura que culmina na década de
noventa, o tema é abordado de outras perspectivas
e desdobramentos da temática.
Dos desmandos provocados pela abundância dessa região
rica, com o suceder das gerações e das
crises, resultou e seu
empobrecimento. Da opulência vivida
pelos coronéis resultou uma geração nostálgica dos tempos áureos ou que vislumbra outros tempos de diversificação e muito trabalho; de outras
lutas e outros valores mais concernentes ao contexto mais recente. Os questionamentos sobre o
ter, o deslocamento de poder - do ter para o ser - redimensionam o imaginário. A região
passa a enxergar o que antes não conseguia: a sua potencialidade, para
além do cacau. Passa a enxergar a
sua situação histórica e geográfica
privilegiada no mapa do país: estar situada no coração da Mata Atlântica, na
biosfera do descobrimento do Brasil e num dos litorais mais belos do país.
Passa a descobrir e valorizar a sua vocação para o Turismo - uma região com
toda a potencialidade para desenvolver um turismo cultural.
5 - De como
os alimentos e seus aparatos
culinários aparecem na literatura regional
Evidentemente que a miscigenação
racial acentuada na Bahia e peculiar na Região Cacaueira
foi determinante da
singularidade da sua culinária. O dendê africano, a mandioca do índio e o
azeite do branco português são elementos indispensáveis na cozinha regional,
como mesmo afirma Paloma Jorge Amado (1994,
p. XXV). Merece ainda ressalto a
presença singular do árabe (sírio libanês, generalizado como turco, para
os sul baianos) e do sergipano na formação e desenvolvimento da cidades,
principalmente Itabuna, antes Tabocas.
Jorge Amado ressalta isto em Tocaia Grande, conforme veremos
adiante.
Em verdade, a literatura regional
apresenta muito mais referências de
hábitos alimentares e utilizações de temperos próprios da região do que uma
inserção da culinária propriamente dita (o fazer dos alimentos), nos
textos, excetuando alguns livros de Jorge Amado. Compondo o
cenário humano, há, sim, a presença de
indicações, no que tange a hábitos alimentares, influências culturais e relação do homem com o quê a terra produz.
Nesse sentido, é possível
identificar a presença das especiarias (lembro que estou considerando o
termo no seu sentido largo, como antes defini: de temperos).
Nesse sentido, é possível apontar
textos que, na sua abordagem do
social, fazem referência a comidas e
temperos característicos da região.
Ou citam caça ou
plantas característicos do seu ambiente. Adonias Filho ao falar dos primórdios do
"território", em Léguas da
Promissão, menciona que "o
feijão e o milho, as bananeiras em
touceiras, tudo se plantava" (Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 126); ou em As Velhas: "Nesse terreiro,
de pé, sentados e de cócoras, as mais estranhas criaturas que Uirá já viu.
Negros e índios, mistura de uns com outros [...] Longe, na outra margem do
ribeirão, as plantações de café, mandioca, milho e feijão abrem o descampado.
E, ainda mais longe, bananeiras e palmeiras em fila na fundura da selva."
(Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. p. 64). Em Corpo Vivo, deixa entrever hábitos
alimentares: " Tenho charque e farinha no bornal" (Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1973. p. 25). Ou
ainda em Luanda Beira Bahia, refere a alimentação básica do litoral:
"O peixe, com a graça de Deus, não faltou nos mares de Ilhéus" (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1979. p. 11).
Em Auto do Descobrimento, Jorge Araújo retoma a ambiência de
1500 e conta da chegada dos portugueses às terras de Porto Seguro; ao final, quando fala em ceia, o faz metafórica e
ironicamente: "vamos, finalmente, ao banquete/ da festa do Imperador./
Sejais servidos, alegres, com calor/ pois a vida, mar alto, encapelado/ inda
vos exige o condão continuado/ do riso/ do mágico riso aberto da
concórdia..." (Ilhéus: Editus, 1977. p. 77). Em A Ceia da Sexta-feira Santa da Família
Lexel, ao abordar o assunto, aponta costumes: A família Fagundes reunia-se
extraordinariamente em volta da mesa. [...] Um deles quis logo enfiar a mão no
prato onde fumegava o vatapá" (Itabuna: Panorama, 1968. p.16).
A referência em Sosígenes Costa, por sua vez, é de recorrência simbólica ao
aroma, como faz em alguns poemas, como em Abriu-se um cravo no mar ao
dizer: "A noite vem do mar
cheirando a cravo" (São Paulo, Cultrix, 1978. p. 21).
Outros textos há que relacionam a comida com a estrutura do livro fazendo
da referência ambiguidade para o discurso. É o que ocorre com Hélio Pólvora ao
escrever o Grito da Perdiz. Muito
mais do que indicar uma caça típica da
cozinha regional, o conto pretende estabelecer uma metáfora entre a perdiz e a
mulher adúltera: "Comeram ensopado de perdiz, provaram beijus que batiam
com as mãos, beberam café ralo adoçado com garapa, Cazuza foi se encostar no
oco da porta." (São Paulo: Difel, 1983. p. 143-4). Ou por
deslocamento, como em História em que entra Coelho (in: 10 Contos Escolhidos.
Brasília: Horizonte, 1984), para abordar comportamentos: " Tenros assim
deveriam ser saborosos. Percebi alguns olhares de mal disfarçada gula e decidi
fiscalizar as conversas antes do boa-noite: se a cozinheira recebesse certas
ordens veladas para o dia seguinte eu teria de me levantar cedo e soltar os
coelhos no mundo" (1984, p. 132). Mas, embora seja fácil identificar os
hábitos alimentares, os temperos não são tão evidentes assim.
Como exceção, há que ser mencionado
o conto O Batetê, de Ruy Póvoas. Ao falar da comida, por
ambiguidade, metaforicamente, fala do
amor de Cecéu: "A noite não foi bem dormida: tinha brigado com Cecéu. Uma
semana de mal. Após um café rápido, com mil pensamentos cortando a cabeça, saiu
para comprar os temperos: tinha de comer batetê. Aquele seria um batetê
caprichado: inhame ralado, sal, cebola, camarão pisado. Ah, sim: um dente de
alho bem socado, o toque do mistério. Gengibre! Sim, gengibre! Ah, Cecéu! Ai,
ai, meu Deus..." (Suplemento Cultural de A Tarde, mai./ 2000). Além da trama amorosa ressaltada pelo aroma,
Póvoas acrescenta ao seu texto a receita
do Batetê, comida africana, trazendo para o texto um fazer culinário que remete
às raízes negras da formação do povo do cacau.
Como facilmente se verifica, essas menções identificadas na literatura não
são temáticas, mas fazem parte do
cenário cultural da região ou são tomadas para evidenciar ironias.
No entanto, as ocorrências citadas (e outras não mencionadas) são
fundamentais para compor a compreensão
da região do ponto de vista sócio-cultural. Merece destaque a forma singular como Jorge
Amado trata o assunto. Em verdade, não
se pode dizer que haja um escritor dessa região que tenha tanta
relação com temperos, cheiros, paladar,
o prazer de comer, como o autor
de Tocaia Grande. Não é à toa que a sua obra inspirou o livro de
culinária de Paloma Amado.
6 - De como artista grapiúna tratou
a comida de seus personagens
Como disse, a presença do assunto
está em quase todos os livros do
ficcionista baiano, seja como tema, seja como referência. Paloma Amado faz um exaustivo levantamento no seu livro A Comida Baiana
de Jorge Amado, inclusive percorrendo toda a obra do autor com citações
e referências acompanhadas das respectivas receitas. Na introdução
intitulada "De como o romancista
baiano, romântico e sensual, deu de comer a seus personagens" (xix -
xxx), faz o trajeto do escritor desde
1930, com O País do Carnaval, quando aos 18 anos o autor fala de
acarajés e mingaus até Os Esponsais de Adma, o "romancinho dos
turcos do sul da Bahia" (1994: xxx), ressaltando a cozinha árabe do quibe
e da esfiha. Conclui a introdução,
enfatizando "todo um universo de encantamento, cor, cheiro e sabor"
presente na obra de Jorge Amado através do "ouro do dendê, a doçura da
jaca, afeto e violência; o ardor da pimenta-de-cheiro, a sensualidade das
mulheres" (idem).
Se a presença da especiaria da literatura remete, como
disse, a uma reflexão sobre
origens, essa reflexão passa pela própria formação de uma sociedade, de
uma cultura;
Se podemos voltar aos primórdios da nossa origem, em 1500, na consideração da miscigenação racial -
índio, negro e branco - , se consideramos a chegada do português a essas
terras dado a sua condição de berço do
Brasil, e a partir daí pensarmos a nossa condição de cidadãos hoje;
para pensar a Região e o seu cidadão também
cabe pensar na formação mais próxima da nação grapiúna.
Considerando, então, o passado para entendimento desse presente, se por um lado especiaria no seu sentido
restrito (vinda do Oriente e trazida pelos portugueses na época da
colonização) traz dos primórdios uma
perspectiva interpretativa de matiz colonizador; especiaria no seu sentido largo (temperos em geral) nos faz ressaltar os elementos negro e índio. Evidencia a nossa miscigenação e ressalta a nossa condição multicultural.
Dos tantos livros que referem aspectos de culinária na obra de Jorge Amado,
Gabriela Cravo e Canela e Tocaia Grande têm nestas considerações
destaque especial devido a terem o seu cenário situado na Região Cacaueira e
pela ocorrência do tema e o seu tratamento em contribuição de um perfil
cultural no que tange a origens e costumes, aspectos imprescindíveis a uma
reflexão identitária.
Para fazer os seus famosos bolinhos de carne, Gabriela utilizava as
especiarias, aromáticos e condimentos. Os
picantes usava-os a gosto:
pimenta do reino e pimenta
malagueta: "os bolinhos da carne, picantes, eram cantados em prosa e verso
- em verso, porque o professor Josué a eles dedicara uma quadra, onde rimava
frigideira com abrideira, cozinheira com faceira" (Rio de Janeiro: Record,
1975) Além desses, tinham ressalto a salsa e
a cebolinha. Paloma Amado, mostra isso em receita, "para servir 8
pessoas: carne moída (chã ou alcatra) ½,
pão dormido 1, ovos 2, sal a gosto, pimenta-do-reino a gosto, salsa e
cebolinha ½ molho, cebola grande 1, pimenta-malagueta a gosto, alho 3 dentes,
farinha de rosca 1 xícara, óleo suficiente para fritar" (1994, p.
15). Esse prato aponta a presença árabe na miscigenação
grapiúna.
O azeite de dendê, condimento tipicamente baiano, que evidencia a nossa
origem negra - óleo de palma, como é
chamado em África - está presente nos
pratos típicos, "na pobre cozinha, Gabriela fabricava riqueza: acarajés de
cobre, abarás de prata, o mistério de ouro do vatapá" (1975, p. 54). A cor
é indicativa do condimento. Paloma Amado Costa ao oferecer ao leitor a receita
do abará -"feijão fradinho 1kg,
cebola e Kg, camarão seco 300g, sal a gosto, azeite de dendê 1 xícara, folhas
de bananeira 2" (1994, p. 8) -
ensina, inclusive, a servi-lo.
Coentro, pimentão, alho, gengibre, pimenta-de-cheiro, pimenta-malagueta
(piripiri, para os africanos), pimenta-cominho, pimenta-do-reino, azeite de
oliva, sal são alguns dos condimentos mais comuns e constantes. Mas há, ainda,
outras elementos que são transformados em condimentos típicos nessa cozinha
singular: camarão seco [sic], amendoim,
castanha de caju, leite de coco. Passam a ser presença obrigatória não somente
na maioria os pratos, ou mesmo nos molhos. São apreciados nos
pratos mais variados: "comera uma moqueca de siris realmente divina em
casa de Maria Machadão e descobrira aquela novata, a Risoleta... (Amado, 1975. p. 48).
Manjericão e hortelã são constantes dos pratos árabes feitos por Gabriela,
por influência, claro, de Nacib: " esse brasileiro nascido na Síria, [que]
sentia-se estrangeiro ante qualquer prato não baiano, à exceção de quibe."
(Amado, 1975. p.56) . Mas também em Tocaia Grande, o turco Fadul come pratos árabes que trazem esses
condimentos: "Ao elogiar a fina qualidade do quibe e o sublime sabor do
araife, pastel de amêndoa com calda de mel, seu doce predileto, soube que fora
a filha única dos donos da casa, a professorinha Aruza, quem preparara o
jantar" (Amado, 1986. p. 151).
Alguns pratos trazidos pelos sergipanos para a Região são encontrados
principalmente em Tocaia Grande de foca mais de perto os chegantes que vieram
trabalhar nas roças de cacau: "Sai Leocádia explicava: - Gosto de comer um
cozido de sustância... - costumes de Sergipe, influindo na mesa grapiúna,
marcando gosto e preferência" (1986, p. 142). Nesse prato, encontram-se
especiarias como folha-de-louro, alho, cheiro-verde (salsa e cebolinha). Afora os temperos, são de ressaltar os
defumados, que dão um sabor especial.
Dessa influência sergipana, há a
presença da carne-seca e das raízes: aipim, inhame, batata-doce. A receita de Paloma Amado Costa para o
cozido referido em Tocaia Grande é rica em legumes, carnes e raízes (Costa:
1994. p. 98-99).
Também as caças têm origem sergipana: "O próprio Boaventura Andrade,
manda-chuva daquelas sesmarias, patrão e compadre, provou o sal da mesa de
Zilda, repetiu os quitutes e os gabou, lambendo os beiços; a galinha de molho
pardo, o teiú moqueado, o frito de capote, os doces de banana de caju, o creme
de abacate." (Amado,1986. p. 98).
Nas caças as especiarias estão presentes, principalmente o cominho e a
pimenta-do-reino. O colorau é também utilizado.
É nos mingaus e nas sobremesas onde o cravo e a canela estão mais
presentes. Mingau de puba, pamonha, mingau de milho, tapioca, mungunzá,
xerém. De todos, a canjica é o mais
típico dos mingaus, típico das festas juninas, que acontecem principalmente no
interior do Nordeste. Em Tocaia Grande é manjar feito pelos sergipanos:
" - Tu quer mesmo saber? Nunca na minha vida passei um São João sem pular
fogueira, sem assar milho, sem comer canjica, sem dançar quadrilha."
(1986, p. 147) . A canela em pó é também muito utilizada na banana-da-terra
frita, servida com açúcar. É mesmo um prato especial no café da manhã servido
por Gabriela: "A verdade é que já sentia saudade dela, de sua limpeza, do
café da manhã com cuscuz de milho, batata-doce, banana da terra frita,
beijus..." (1975, p. 87).
A presença das referências culinárias e das especiarias na Literatura Sul baiana é, sem dúvida, um indicativo da história dessa Região. Seja retomando aos
primórdios dos tempos de colonização, em atenção às influências culturais dos
brancos colonizadores; seja observando a
formação dessa cultura cacaueira, fincada na Costa do Cacau e na Costa do
Descobrimento; seja , ainda, em atenção à formação na nação grapiúna e à
influência dos que contribuíram para essa formação: negros, sergipanos e árabes, percorrendo o
imaginário da especiaria na Literatura
Sul baiana, constatamos a capacidade
comunicadora dessa literatura que é influenciada pela história e a influencia.
Todos esses textos, em verdade, vêm reforçar a problemática da identidade
de uma Região tão questionada nesses últimos tempos de discussão sobre a
história do Brasil. Bem à propósito, a
poetisa itabunense Valdelice Pinheiro diz:
"Quinhentos anos/ estranhos desfiguram minha face negra,/ meus dedos
índios. Por que estes dedos/ gorduchos se eu nunca fui barroca? Por que esta lágrima
de Pietá, se meu/ centro é a fecundidade de minha barriga,/ a ligeireza de meus
pés?" (1999: 1). Se, como pensa Said, as histórias "se tornam o método usado pelos povos
colonizados para afirmar a sua identidade e a existência de uma história
própria deles" (1995, p. 13), nessas terras grapiúnas, apesar do seu forte peso histórico
e de laços com o branco, através da sua
Literatura fica patente uma cultura singular, que evidencia a miscigenação do
seu povo e é garantidora de uma
sociedade multicultural.
Maria
de Lourdes Netto Simões
Doutora (pós-doc) em Estudos
Portgueses, pela Universidade Nova de Lisboa