Cyro de Mattos
Curt Meyer-Clason nasceu em 19 de setembro de 1910, em Ludwigsburg,
cidade próxima a Suttgart, no sudoeste da
Alemanha. Contista, romancista,
autor de diários, ensaísta,
conferencista, editor e
tradutor. Como autor publicou quinze livros e, entre eles, Equador,
romance biográfico no qual narra a ausência de identidade pessoal em uma juventude sem rumo, em razão do período sombrio que passara a
Alemanha no fim do século 19 e princípio do século 20. Sua correspondência com
autores que traduziu forma um legado precioso, que dará grossos volumes quando
publicada e ajudará a compreensão de sua obra.
A
orquestração do destino quis que Curt Meyer-Clason ficasse notabilizado como tradutor. Ele
foi o maior divulgador da literatura
brasileira, portuguesa e latino-americana na Europa, tendo começado suas
atividades de tradutor logo após a
Segunda Guerra Mundial. A lista completa de autores consagrados que
traduziu ultrapassa mais de 150 títulos.
Esse construtor de pontes literárias traduziu para o alemão obras seminais e, entre elas, “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa,
e “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez.
Seus
ancestrais pertenciam à nobreza. O pai era oficial no exército prussiano.
Depois de completar o ginásio em Sturrgart, Curt Meyer-Clason
matriculou-se numa escola de comércio. Focado no desejo de exercer a
vida no comércio, seguiu para o norte da
Alemanha. Em Bremen encontrou trabalho numa firma americana que atuava no ramo
de importação de algodão e tinha filial em Le Havre. O jovem empregado havia
aprendido a “classificar algodão” e
nessa época já dominava o inglês e o
francês. Isso lhe deu condições de se
tornar o encarregado
da correspondência da empresa. Nesse
tipo de trabalho teve a oportunidade de viajar
com frequência entre Bremen e Le Havre.
A empresa enviou-o ao Brasil onde passou a trabalhar em São Paulo como “controlador de
algodão”. Nesta função conheceu os mais importantes portos brasileiros, além de
passar longos períodos na Argentina.
Radicou-se em Porto Alegre onde dirigiu uma empresa fabricante de móveis. Em
pouco tempo se tornou pessoa
conhecida na sociedade local. Desfrutava
os prazeres que seu novo ambiente oferecia. Era jovem e atraente. Possuía um automóvel conversível, o que era
raro em sua idade e uma prova de seu
reconhecido status. Mais tarde, em uma de suas entrevistas, Meyer-Clason,
referiu-se àquela época, dizendo: “Naqueles tempos eu era um dandy. Adorava três coisas: moças
bonitas, gravatas e tênis”.
Do lado de lá, a Segunda Guerra expandia-se, o bem e o mal coexistiam numa vizinhança das mais imprevisíveis quanto mais niilista. O mal não tinha limite. Corpos de pessoas eram usados para experiências absurdas. Almas sem clamor e pequenos corações viviam aterrorizados sob a expectativa de que só iriam sair dos campos de extermínio pela chaminé reduzidos a cinzas. Sirenes, bombas, torpedos. Explosões, crateras, escombros. Na enchente a morte. Tudo acontecia de maneira imperturbável. A fera ressurgia da antiga caverna para galopar nas trevas. Não concedia a trégua com suas manadas do terror. A vida não tinha qualquer possibilidade numa condenação sem sentido. Muita gente morta, pessoas enforcadas, mutiladas, queimadas.
Do lado de lá, a Segunda Guerra expandia-se, o bem e o mal coexistiam numa vizinhança das mais imprevisíveis quanto mais niilista. O mal não tinha limite. Corpos de pessoas eram usados para experiências absurdas. Almas sem clamor e pequenos corações viviam aterrorizados sob a expectativa de que só iriam sair dos campos de extermínio pela chaminé reduzidos a cinzas. Sirenes, bombas, torpedos. Explosões, crateras, escombros. Na enchente a morte. Tudo acontecia de maneira imperturbável. A fera ressurgia da antiga caverna para galopar nas trevas. Não concedia a trégua com suas manadas do terror. A vida não tinha qualquer possibilidade numa condenação sem sentido. Muita gente morta, pessoas enforcadas, mutiladas, queimadas.
Do lado de cá, o governo Getúlio Vargas procurava se
situar entre os blocos inimigos, que
mantinham acesa a guerra em seus passos devastadores. Curt Meyer-Clason foi
acusado de espionagem a serviço do governo nazista de Hitler. Foi preso pelos algozes do Estado Novo e condenado a 20 anos de prisão . Passou cinco
anos no presídio de Ilha Grande, no Rio
de Janeiro. Foi quando o tempo parou
para ele enquanto na Europa milhões de
homens da mesma idade se matavam, mutuamente, sem qualquer tipo de remorso, numa incrível capacidade de
resistência.
Um companheiro de prisão, o barão
Gerhard von Klein, alemão poliglota e muito culto, despertou
em Curt Meyer-Clason o interesse pela leitura. Assim tinha início
sua grande viagem pelo universo dos
livros. Lia tudo que caía em suas mãos
para entender melhor o mundo. Rilke,
Thomas Mann, Friedell, Montaigne, Pascal, Proust, Bernanos, Berdjiajew, Buber,
os grandes romancistas russos e autores brasileiros. Na medida em que
viajava em companhia de grandes autores,
ia pulsando dentro dele outro homem.
Posto em liberdade estabeleceu-se no
Rio de Janeiro. Foi trabalhar no comércio de compensação alimentícia. Exportava
madeira de pinho e importava uísque
escocês. Em 1954, depois de 17 anos no
Brasil, regressava à Alemanha, fixando
residência em Munique. E lá, em seu chão de origem, começou a trabalhar como revisor para várias editoras.
Nessa época, como visitante, passou a freqüentar o Consulado Geral do Brasil, para onde se dirigia constantemente. Com
certeza para matar a saudade que sentia do nosso país. Como deveria acontecer,
não demorou e foi sendo solicitado para trabalhos de tradução. Assim foi que
nasceu a ideia e tomou corpo seu desejo de levar para a Europa através da literatura a forma de vida
latino-americana. Começava então seu longo e firme processo existencial de
traduzir para o alemão obras do espanhol, português, francês e inglês.
Curt Meyer-Clason permaneceu em
Munique até 1969. Nessa parte do tempo,
já havia traduzido Gabriel García Márquez, João Guimarães Rosa, Juan
Carlos Onetti, César Vallejo, Augusto Roa Bastos, Jorge Amado, Carlos Drummond
de Andrade e outros autores importantes da literatura latino-americana.
Tornara-se figura respeitada nos círculos editoriais e culturais da Alemanha. Paralelamente ao seu trabalho de tradutor, mantinha estreito contato com quase todos os
autores da América Latina vivos.
Em 1969 recebeu o convite para
assumir o cargo de diretor do Instituto
Goethe de Lisboa. Permaneceu nessa função até ocorrer sua aposentadoria em
1976. Nesse tempo, Portugal ainda vivia
sob a influência dos anos da ditadura de
Salazar, que deixara o governo por questões de saúde, em 1968. Seu
sucessor, Marcelo Caetano, seguiria a
mesma linha política de repressão salazarista.
Os meios de comunicação eram controlados pela máquina opressiva estatal de um
governo ditatorial. À maneira
própria de um intelectual idealista, sem
se intimidar com o patrulhamento ideológico e repressivo do governo português, Curt
Meyer-Clason transformou o Instituto Goethe de Lisboa “numa porta aberta para
a Europa”. A sede do Instituto servia como um oásis e ponto de encontro para
escritores, representantes da intelectualidade portuguesa e dissidentes de
todas as correntes políticas.
Convidava
autores e intelectuais alemães para encontros com autores portugueses. Werner Herzog, Peter Weiss, Walter Jens,
Martin Walser, Günther Grass, Heinrich Böll, Hans-Magnus Enzensberger e o
austríaco Thomas Bernhard são apenas alguns dos ícones da cultura alemã que visitaram Lisboa naquela época. Com uma companhia
teatral de Lisboa, Meyer-Clason produziu apresentações do dramaturgo alemão
Bertholt Brecht na capital lusa.
Sempre ajudava autores portugueses, como Miguel Torga,
José Saramago e António Lobo Antunes,
a encontrar editoras para lançamento de
suas obras na Alemanha.
Curt Meyer-Clason tornou-se personalidade cultural de primeira linha em Portugal, uma pessoa muito estimada nos
meios intelectuais locais. Quando
circulou a notícia de que deixaria a direção do Instituto Goethe, houve de
pronto uma reação contrária entre os intelectuais locais. Foi iniciada uma
campanha na mídia portuguesa, liderada pelo romancista António Lobo Antunes,
com vistas à permanência dele. Ressalte-se que na relação dos autores portugueses que traduziu para o alemão figuram Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco,
Miguel Torga, Fernando Namora, Almeida
Faria, Urbano Tavares Rodrigues, Jorge de Sena, Eugenio de Andrade e Sofia de
Mello Breyner-Andresen. Editou também antologia de contos e poemas.
Em 1976, mais uma vez regressava a Munique. Dessa vez para
se dedicar, em tempo integral, ao trabalho de tradutor e à escrita de seus textos e ensaios.
Além dos autores portugueses e brasileiros, já citados, outros ficcionistas e poetas brasileiros e latino-americanos foram traduzidos por Curt Meyer-Clason: Adonias Filho, Mário de Andrade, Jorge Luis Borges, Ignácio de Loyola Brandão, José Cândido de Carvalho, Rubén Darío, Autran Dourado, Ferreira Gullar, Clarice Lispector, Machado de Assis, João Cabral de Melo Neto, Gerardo Mello Mourão, Pablo Neruda, Darcy Ribeiro, João Ubaldo Ribeiro, Augusto Roas Bastos, Fernando Sabino, José Sarney, César Vallejo, Octávio Paz e Cyro de Mattos.
Além dos autores portugueses e brasileiros, já citados, outros ficcionistas e poetas brasileiros e latino-americanos foram traduzidos por Curt Meyer-Clason: Adonias Filho, Mário de Andrade, Jorge Luis Borges, Ignácio de Loyola Brandão, José Cândido de Carvalho, Rubén Darío, Autran Dourado, Ferreira Gullar, Clarice Lispector, Machado de Assis, João Cabral de Melo Neto, Gerardo Mello Mourão, Pablo Neruda, Darcy Ribeiro, João Ubaldo Ribeiro, Augusto Roas Bastos, Fernando Sabino, José Sarney, César Vallejo, Octávio Paz e Cyro de Mattos.
Causa espanto como ele, já tradutor de inúmeros
escritores da literatura, brasileira, portuguesa e latino-americana, ainda conseguiu traduzir autores de outras nacionalidades, do porte
de Louis Baudin, Brendan Behan, Isaiah
Berlin, Erich Blau, Alphonse Boudard, Geoffrey H.S. Bushnell, Alfred Chester,
Antonio Di Benedetto, Jean Descola, José Gorostiza, Bernard Gorsky, Ronald
Hardy, Alan Harrington, Sean Hignett, Martin Buber, Alberto Moravia, Luc
Stang, Vladímir Nabókov e Henry Rothe Em
alguns casos traduziu mais de um livro de cada autor.
Certa vez perguntaram-lhe se ele teve muita dificuldade para traduzir Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Respondeu que traduzir o Grande sertão: Veredas para o alemão é mais ou menos como traduzir o Ulisses, de James Joyce. O que ajudou no êxito do projeto é que Curt Meyer-Clason era amigo de João Guimarães Rosa. Durante anos manteve correspondência com o escritor mineiro. Foi-lhe possível assim resolver as partes mais difíceis da tradução com o auxílio do próprio autor. Trocaram mais de quinhentas cartas. Ele apresentava as questões, formulava as perguntas, o romancista respondia apontando as soluções cabíveis.
Certa vez perguntaram-lhe se ele teve muita dificuldade para traduzir Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Respondeu que traduzir o Grande sertão: Veredas para o alemão é mais ou menos como traduzir o Ulisses, de James Joyce. O que ajudou no êxito do projeto é que Curt Meyer-Clason era amigo de João Guimarães Rosa. Durante anos manteve correspondência com o escritor mineiro. Foi-lhe possível assim resolver as partes mais difíceis da tradução com o auxílio do próprio autor. Trocaram mais de quinhentas cartas. Ele apresentava as questões, formulava as perguntas, o romancista respondia apontando as soluções cabíveis.
Nessa
condição, Guimarães Rosa foi a Munique várias vezes para discutir com ele os termos e as passagens mais complicadas da
obra. Chegava a permanecer de três a
quatro semanas. Regressava ao Brasil para retornar algum tempo depois. Às vezes, tradutor e autor traduzido discutiam
dias, com vistas a encontrar a
expressão certa ou adequada de um só
vocábulo, que, muitas vezes, nem estava registrado no dicionário. Muito facilitou no
trabalho árduo o fato de João
Guimarães Rosa ter sido poliglota. Falava fluentemente vários idiomas, inclusive
o alemão, que aprendera durante o
período de 1938 a 1942, quando fora
cônsul-geral do Brasil, em Hamburgo. Esse mesmo método de trabalho João Guimarães
Rosa manteria posteriormente com os seus tradutores italiano e americano.
Este articulista teve
a honra de ser traduzido por Curt Meyer- Clason. Enviei
primeiro para ele o livro Vinte
poemas do rio e recebi de volta
vários poemas traduzidos e na sua carta a seguinte opinião: Li e reli seus poemas com os sentidos
encantados e admiração pelo seu talento mágico. Nunca pensei que um pequeno
livro de um poeta do interior baiano fosse sensibilizar o consagrado tradutor
de João Guimarães Rosa e Gabriel Garcia Márquez. Animado, enviei depois o Cancioneiro do cacau, livro que
havia recebido o Prêmio de Poesia Ribeiro Couto, da União
Brasileira de Escritores (Rio), o Segundo Prêmio Internacional Maestrale Marengo d’Oro,
em Genova, Itália, o Terceiro
Prêmio de Poesia Emílio Moura, da Academia Mineira de Letras, e foi finalista
do Prêmio Jabuti. Com muita alegria
recebi dele outra carta fazendo
elogio ao livro e ainda vários poemas
traduzidos.
Foi assim que mantive correspondência com
o notável tradutor alemão por mais de seis anos. E tive o privilégio de ter dois livros meus
traduzidos por ele: Canto a Nossa senhora
das Matas, (Gesang Auf Unsere Liebe
Frau von Den Wälden), editado pela Fundação Casa de Jorge Amado, Salvador, e
Zwanzig Gedichte von Rio und
andere Gedichte (Vinte Poemas do rio
e outros poemas), publicado na
Alemanha, pela Projekte-Verlag, de Halle. Guardo como um
tesouro raro a correspondência que mantive com Curt Meyer-Clason . Pretendo
publicar um dia.
Curt Meyer-Clason, este alemão
carismático, que seduzia a plateia de professores universitários, escritores,
jornalistas, estudantes e leitores quando discorria, durante horas, acerca de autores e temas da literatura
brasileira, portuguesa e latino-americana,
é incomparável como construtor de pontes literárias entre vários países.
No século vinte nenhum outro divulgou tanto e com tamanha eficiência a literatura
brasileira na Europa. No Brasil ele recebeu algumas merecidas e altas
distinções: Medalha de Ouro Machado de
Assis da Academia Brasileira de Letras, Membro-Correspondente da Academia
Brasileira de Letras, a Ordem Cruzeiro
do Sul e o Prêmio Biblioteca
Nacional. Na Europa foi agraciado com o
Prêmio de Tradutor da Academia Alemã, para Poesia e Língua, e com a Grã-Cruz de Mérito da República
Federal da Alemanha. Em Portugal foi integrante da Associação dos Escritores
Portugueses.
Foi um entusiasmado defensor do Brasil. Não se tornou rancoroso nem
guardou ressentimento pelos anos difíceis que teve no presídio da Ilha Grande,
no Rio de Janeiro. Esse tradutor admirável, conhecedor profundo e intenso
da literatura brasileira faleceu
em janeiro de 2012, em Munique, aos 101
anos de idade.
Referências Bibliográficas
MATTOS, Cyro de. Canto a Nossa senhora das Matas (Gesang Auf Unsere Liebe Frau Von Den Wäldern), tradução Curt
Meyer-Clason,, Fundação Casa de Jorge
Amado, Casa de Palavras, Salvador, 2004.
-------- Zwanzig
Gedichte von Rio und andere Gedichte
(Vinte poemas do rio e outros poemas),tradução Curt Meyer-Clason, Projekte-Verlag, Halle, Alemanha, 2010.