Há pouco tempo, li um artigo de um respeitável professor, no qual ele
afirmava odiar o futebol e considerá-lo como sandice global, e que o referido
esporte reforça o machismo ou estimula a homofobia e outras tantas
barbaridades. Ora, não gostar do futebol ou de qualquer outro esporte é um
direito natural, subjetivo de qualquer ser humano, entretanto, o fato de não
gostar não o autoriza, por si só, a fazer afirmações inverossímeis ou a falar
de um esporte cuja essência desconhece. Da mesma forma, não poderia me calar
diante de tamanha injustiça lançada contra a maior paixão nacional e o maior
instrumento de integração entre os povos. Seria, certamente, uma omissão
imperdoável de quem é verdadeiramente amante desse esporte simplesmente mágico
e extraordinário que pára e apaixona uma nação, um continente, ou até mesmo um
planeta. O articulista demonstrou desconhecer o objeto a ser estudado, pois
construiu o seu pré-conceito apoiado em premissas falsas que não condizem com o
que acontece na realidade, exteriorizando, por assim dizer, uma visão
reducionista ou periférica do futebol.
Segundo o médico Dráuzio Varela, o corpo é uma maquina que foi preparada
ou programada para o movimento. O futebol não é simplesmente o esporte de
vários homens correndo atrás de uma bola. Ele é muito mais que isso, é arte
pura, equivalente à grande apresentação de uma ópera, é o movimento
transformado em arte, é o flerte do drible do jogador, da jogada bem trabalhada
e imortalizada, do lençol, do lançamento de 100 metros, da matada no peito, da
ginga do carregador de piano, da tabelinha, do arremate de “três dedos”, ou da
folha seca, da defesa espetacular do goleiro, da elegância do defensor técnico
no desarme ou na saída de bola, da liderança do capitão sobre os seus pares, da
bola na trave, ou a precisão do arremate colocando a bola onde “a coruja
dorme”. O futebol é a estratégia do técnico para chegar à vitória, o futebol é
a explosão do “orgasmo” do gol, do poder de superação e da perseverança do time
que está perdendo, e que busca reverter a situação que lhe é desfavorável. O
futebol é a paixão do gol aos 44 minutos do segundo tempo, que muda
completamente a história de um jogo que vinha se desenhando ao longo de 89
minutos. O futebol, portanto, é arte, paixão e proporciona a magia de reter em
nossa memória esses momentos simplesmente inesquecíveis, e que hoje já podem
ser revividos nos diversos museus do esporte, nos vídeos e na literatura
esportiva espalhados pelo mundo.
O futebol é instrumento de transformação social. Quantos jovens sem
perspectiva conseguiram mudar sua vida através do esporte? Quantos jovens que
viviam no mundo das drogas conseguiram afastar-se do vício e da droga através
do futebol? Quem pode desmerecer o trabalho das escolinhas de futebol nas
periferias das grandes cidades, lutando arduamente contra o traficante de
drogas? Quantos garotos foram resgatados das drogas e do crime, e hoje são
cidadãos úteis à sociedade e ajudam seus familiares a sair da miséria.
Desnecessário enumerar, diante de tantas histórias que nos emociona a cada dia.
O futebol é mecanismo de paz, e foi com essa perspectiva que Pelé, numa
excursão que o Santos fazia pelo Congo Belga, conseguiu temporariamente
paralisar uma guerra civil, jogando duas partidas de exibição. Nem a ONU
consegue a integração de todos os povos do planeta num mesmo lugar como o
futebol, que mobiliza todas as nações, incitando o sentimento de pátria, hoje
quase esquecido em nosso país
O futebol é democrático e anti-homofóbico (se realmente existe essa
expressão), pois joguei com pobres, lavadores de carro, milionários,
homossexuais, brancos, negros, amarelos, índios, médicos, juízes, garis,
pescadores, trapicheiros, carregadores de cacau, trabalhadores rurais,
analfabetos, doutores, professores e estrangeiros, e percebi que todos, dentro
das quatro linhas, são absolutamente iguais, ou melhor, são atletas, despojados
de qualquer cargo ou honraria e, muitas vezes, o lavador de carro pode ser o
capitão do time pelo respeito e liderança democraticamente conquistados junto a
seus pares. Jamais presenciei lances de racismo ou machismo, contrario sensu,
sempre me lembro do respeito e da disciplina que eram passadas, principalmente,
pelo treinador. Quem é boleiro, não precisa se apresentar, mesmo que seja estrangeiro,
basta falar a linguagem universal do futebol. Um grande desportista, se não me
engano, Sotero Monteiro, dizia que conhecia o jogador pelo arriar das malas. No
futebol, existem muitas regras, como por exemplo, “quem pede recebe, e quem
desloca tem preferência”; “o flanco é o caminho mais curto para chegar ao gol”.
Essas e outras regras podem ser utilizadas em nosso cotidiano.
Evidentemente, que temos alguns
fatos negativos no futebol, inclusive, com a incidência de brigas e mortes nos
estádios, mas isso é exceção e não poderemos jamais julgar um esporte pela
exceção. A mídia normalmente extrapola na cobertura excessiva do futebol, mas
isso só confirma a importância do futebol para as pessoas, pois ele é
entretenimento, é sonho, é alegria, e também lucro assegurado para as empresas
televisivas.
O futebol gera emprego e renda em todo o mundo. Movimenta uma cidade,
principalmente nos finais de semana, abrindo espaço para que pessoas simples e
pobres possam vender seu amendoim e rolete de cana nos estádios e levar algum
dinheiro para casa.
A atriz Maité Proença, em sua crônica “Era inveja”, diz que, “No Brasil,
três coisas são indiscutivelmente democráticas. A praia, que debaixo de um sol
junta madame e funkeira trajadas no mesmo uniforme. O futebol, que une o ladrão
e o padre numa imensa fraternidade. E o trânsito, que bota o Zé do Chevete e
João do Jaguar lado a lado, paralisados pela mesma encrenca. Das três
brasilidades, o futebol é a que mais me intriga”, finalizou.
O futebol molda o caráter e o espírito de liderança, ensina a trabalhar
o seu equilíbrio emocional, ensina a sonhar, a perseverar, fortalece o espírito
de união e solidariedade, estimula a disciplina e reverencia o respeito, mas,
ao mesmo tempo, estimula o atleta a superar os seus próprios limites, ensinando
a ganhar e, sobretudo, o que é o mais difícil, a perder, sobretudo com
dignidade, demonstrando que a vida também é assim, ou seja, a vida é feita de
desafios, de perdas e ganhos. Parodiando o inesquecível Raul Seixas, o futebol,
imitando a vida, é feito de batalhas... É preciso caminhar, não desistir nunca,
aprender humildemente com a derrota, e tentar outra vez.
Desta forma, em homenagem a uma das grandes invenções humanas que ainda
existe no planeta Terra, gostaria de reafirmar que eu adoro futebol, e respeito
quem não gosta, muito embora não seja obrigado a concordar com as opiniões
sobre ele, principalmente quando ela vem com a marca do preconceito, daqueles
que só conseguem enxergar alguns efeitos externos negativos, que absolutamente
não afetam a essência transformadora da maior paixão nacional e o maior
instrumento de integração entre os povos, que é o futebol. Como o mundo seria
mais pobre e sem graça sem o futebol! Como imaginar esse mundo sem o talento de
Pelé, Garrincha, Tostão, Rivelino, Maradona, Zico, Platini, Frank Beckenbauer,
Romário e tantos outros monstros sagrados do esporte que deixaram registrada a
sua arte futebolística em nossas memórias? Como depreciar a emoção brotando dos
olhos do torcedor apaixonado? Para finalizar, com Voltaire, quero dizer, para o
respeitável articulista - que não gosta de futebol -, que “defenderei até a
morte o direito de dizer, embora não concorde com nada do que dissestes”.
MARCOS
BANDEIRA – Juiz da Vara da Infância e
Juventude de Itabuna, membro da Academia de Letras de Itabuna, professor de
Direito da Criança e Adolescente da UESC e ex-atleta de futebol.