A VELHICE, ESTA DESCONHECIDA - Sônia Carvalho de Almeida Maron



A VELHICE, ESTA DESCONHECIDA

                                      Sônia Carvalho de Almeida Maron*

“Nunca falei de público sobre minhas experiências
de velho a não ser por alusões, e no entanto,
venho me observando há tempos”. (BOBBIO,
Norberto, Tempo da memória, 4ª ed. Rio de 
Janeiro: Ed.  Campus,1997, p. 17)
                                                              
         A vida, como nós conhecemos, tem limites.  À medida que os anos vão passando atitude mais sensata é aceitar os limites decorrentes da proximidade do fim   do    ciclo estabelecido como derradeiro. Ocorre, no entanto, que a aceitação da realidade inexorável não é pacífica. Todos conhecem os limites, podem até sentir os sintomas.  O difícil é aceitá-los. As rugas inevitáveis são retardadas com cremes, tratamentos estéticos e cirurgias milagrosas de rejuvenescimento. A flacidez muscular, celulite e outros fenômenos da terceira idade encontram resposta positiva em múltiplos tratamentos paliativos nas academias de cultura física e descobertas cada vez mais sofisticadas que prometem juventude, se não eterna, pelo menos prolongada.
         E assim seguimos, de  ilusão em ilusão, homens e mulheres, vendo a vida passar, sempre fugindo do estigma que nos identifica como “aposentados”,  “inativos” ou simplesmente “idosos”. O pior é que acreditamos piamente quando encontramos um contemporâneo com aparência deplorável, que diz entusiasmado: “Você está ótimo! (ou Você está linda!)  “A vida parece que não passou desde a última vez em que nos vimos!” E nós acreditamos!... O sonho dura até que alguém, na tentativa desastrada de elogiar nossa aparência ou performance em alguma atividade, pronuncie a frase fatal: “Quando eu envelhecer, quero ser igual a você!”  E se acontecer? Se esse alguém aparecer? Vou encarar? Qual seria  a resposta apropriada? Indelicada? Irônica? Resignada? Erudita? Bem humorada? Afinal, é mais um desafio, entre tantos outros, encarar a velhice e descobrir suas vantagens. 
Na velhice continuamos  sob a proteção dos princípios do contraditório e da ampla defesa. Ainda mais ampla, diria eu, pelo curto espaço de tempo que nos é dado já que o balanço final se aproxima. Se o tempo reservado aos velhos é curto, não podemos deixar nada por dizer.
         A velhice é a negação do futuro. Quando o tempo comanda o espetáculo, passado e presente figuram em primeiro plano, notadamente o passado, cenário preferido do idoso,  território onde viveu, viu e venceu. A propósito do futuro, afirma Hannah Arendt[1] que a falta de futuro não precisa ser, necessariamente, uma causa de angústia. Pode abrir novas possibilidades para o pensar, na medida em que o “eu que pensa” extrai significado do passado, conferindo-lhe a forma de uma “estória” por meio da memória.
        Um dos livros mais conhecidos de Hannah Arendt [2] traz no prólogo reflexões sobre “verdades triviais e vazias”,  por ela consideradas como características do nosso tempo. Daí, propõe refletir sobre o que estamos fazendo, melhor dizendo, aconselha a fuga da irreflexão, dita “imprudência temerária”. Na mesma linha de raciocínio apresenta seu livro como obra direcionada às manifestações mais elementares da condição humana – labor, trabalho e ação – afirmando que “a mais alta e talvez a mais pura atividade de que os homens são capazes – a atividade de pensar”, não será objeto de análise naquela obra. Pois é, mutatis mutandis , aplicando-se ao idoso as palavras da filósofa alemã, a velhice desenvolve a atividade de pensar, razão que pode levar os jovens a iniciar com eles o aprendizado destinado ao envelhecimento. 
         A ideia do futuro é sempre dissecada quando a discussão é a velhice. Como o envelhecimento é um processo singular e individual, que varia de acordo com o lugar, a época e a sociedade,  é quase impossível que a experiência de um idoso  possa ser  seguida ou imitada,  posto que o tempo interiorizado é o tempo vivido.  Assim, na reflexão de Arendt nasce o “eu que pensa”. Nesse estágio, cuida-se da lapidação da alma, cultiva-se o que é invisível para os olhos, usando as palavras de Saint Exupéry[3]. O superficial, tão significativo para os jovens, transmuda-se em detalhe verdadeiramente trivial e vazio.  Seja como for, a velhice é comandada pelo tempo vivido e são as experiências pretéritas que apontam a direção no difícil rito de passagem. 
        Chega de tentativas de erudição. É que, em se tratando de velhice, os fragmentos  dos textos citados são necessários à prova material da memória e lucidez do idoso, ,permanecendo como blindagem aos diagnósticos apressados de mal de Alzheimer, demência senil ou esclerose múltipla. Ninguém sabe o que podem pensar de um idoso. É bom prevenir...
         Após cuidadosa reflexão,  concluí  que  o  velho não gosta de ser  surpreendido no processo de envelhecimento, apesar da fidelidade do amigo impiedoso, o espelho, secundado pela lista de enfermidades bem administradas pelos amigos fidelíssimos: os médicos. No meu sentir (registre-se que a expressão “no meu sentir” está na última moda, usada fartamente nos votos dos Ministros do STF no julgamento da Ação `Penal nº 470),   seria necessária a elaboração de um manual   para orientar o jovem desavisado no relacionamento com o idoso.  Ocorre que o Brasil, pródigo em leis, já contemplou o idoso com o seu estatuto de 118 artigos,  Lei nº 10741, de 1º de outubro de 2003. Assim, a solução seria uma emenda  que teria a seguinte redação:

           Art. 1º  -  Somente os descendentes mais próximos do idoso – filhos, netos e bisnetos -  podem pronunciar a frase “quando envelhecer quero ser igual  você”.

           § 1º  Gozam da mesma prerrogativa os demais descendentes em linha reta se convivem, amam e respeitam o idoso, sendo por ele amados.

           § 2º   Se o idoso é professor em exercício ou aposentado, o mesmo direito assiste aos alunos ou ex-alunos, em qualquer época, local ou circunstância, por constituírem categoria especial de filhos.

          § 3º  Estende-se o mesmo direito aos médicos do idoso, quando são de idade igual ou aproximada aos filhos biológicos ou adotivos.

            A propósito, estas mal traçadas linhas encontram fundamento no art. 10, § 3º da lei acima referida e o idoso, seu destinatário, imprime ao dispositivo, in fine, interpretação mais ampla.  No meu sentir (a expressão está na moda no mundo jurídico, já expliquei, é delicada, vale repetir), a lei seria dispensável se o relacionamento entre jovens e velhos tivesse como suporte uma trilogia formada de respeito, bom senso e sensibilidade. Não incluí a sabedoria por ser privativa do velho. No mais,  é Natal, tocam os sinos, acendem-se as luzes  e o clima conduz ao amor e à fraternidade. 
  


*Ex-aluna do Colégio Divina Providência
                                                                       Profª da UESC aposentada
                                                                      Juíza de Direito aposentada
                                                                       Membro da Academia de Letras de Itabuna


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[1] Cf. ARENDT, Hannah. For Love of the World. New Haven, Yale University Press, p. 457, apud BOBBIO. Prefácio à edição brasileira, VII, Celso Lafer.
[2] ARENDT, Hannah. Condição humana, 10 ed. São Paulo: Forense Universitária, 2001, p. 13
[3] EXUPÈRY, Antoine de Saint. O Pequeno principe, 6ª ed. Rio de Janeiro:Livraria Agir Editora,1959,p.74