HÉLIO PÓLVORA NO MAR DE AZOV - Cyro de Mattos

  


 



Hélio Pólvora no Mar de Azov
                                     *Cyro de Mattos

 
         O baiano  Hélio Pólvora conquistou com O grito da perdiz o Prêmio  Bienal  Nestlé de Literatura  Brasileira,  na categoria de contos,   em 1982. No mesmo concurso foi   agraciado  pela segunda vez com Mar de Azov, em  1986. Assim como  no primeiro livro premiado,  Mar de Azov  é   constituído de quatro narrativas, que se desenvolvem no Sul da Bahia. São  quatro narrativas da melhor literatura:  “Mar de Azov”,”Zepelins”,  “Começo de Vida” e “As Dríades”. Hélio Pólvora nos dá mais uma vez, nestes contos,  uma amostragem do contista moderno dotado de amplos recursos narrativos,  sensibilidade apurada  e imaginação privilegiada. Tanto no conto  sertanista,  rural ou urbano, como na narrativa que deflagra  os abismos da condição humana,  Hélio Pólvora vem executando  com  suficiência  o conto  em extensão e, ao mesmo tempo, profundo.  De seu estilo impressionista escorrem as verdades essenciais do ser,  filtradas  das correntes subterrâneas,  solidões e  desencontros,  por vias e arredios das  perplexidades.      
        É  visível que a  vocação desse  contista inclina-se  com intenções de recolher e transformar na arte genuína do conto  as impressões que a vida propõe nos momentos habitados por  vozes  agudas. O  tema assim delineado  exige  desdobramento ficcional porque seu tempo narrativo será  alimentado por uma sensibilidade arguta,  imaginação que abrange  variações criativas e brilhantes. O texto deve ser   por isso mesmo  disposto, justaposto, superposto pelo acúmulo de planos,  desenvolvido com nuances, fragmentado no tempo,  recheado de impressões  quanto mais investigadoras do outro e o mundo.   Plasmado  por uma técnica especial, que se compraz  quanto mais espraia por todos os lados a  sua busca da imagem plena.  O contista baiano  está sempre à vontade quando manipula forma e fundo   dentro da  unidade essencial,  resultante de análises e psicologias.     
         O factual que serve de motivação ao autor do conto curto, produzido com  rapidez decorrente dos  flagrantes da vida, não atrai o autor de Mar de Azov. Não motiva com predominância  suas criações urdidas com engenho e arte.  Consciente de  compromisso existencial de   escritor e ficcionista,  a força criadora do discurso  basta-se em extensão irmanada com a compreensão. Mostra-se, na escrita de  envolvimentos  emotivos, com o  lírico e o dramático, o onírico e o  representativo do ser,  ritmada nos rumos muitas vezes  contrastantes  dos  personagens. 
            Desde que escreveu o conto “Os Galos da Aurora”, imbatível história de bicho em nossas letras, até hoje o contista deixou  claro que não se sente à vontade na concepção e execução do conto curto. Distante está assim  de um Dalton Trevisan, outro contista de primeira linha  de nossas letras, adepto contumaz do conto breve,   sempre a expor  o drama em síntese, recriado no mínimo espaço do acontecimento extraído do  real. O elogio de personagens repetitivas  realiza-se com o contista curitibano  nos  desastres cotidianos da comédia.   Hélio Pólvora está também distante de O. Henry,  um dos mais populares contistas dos Estados Unidos,  que escreveu mais de trezentos contos durante o período de dez anos, com vistas ao registro de  flagrantes da vida cotidiana de Nova Iorque,  com seus tipos e dramas. O. Henry tornou-se em pouco tempo um contista do gosto popular, que funciona  na escrita  prazerosa armada com habilidade para atrair o leitor.  Propõe o enredo curto,  sem descrições, impressões e devaneios, embutido no acontecimento que corresponde ao registro de um incidente da realidade circunstante.  
           Hélio Pólvora,  nos atritos extremos das solidões,  desencontros dos seres em aflição,  incursões  e questionamentos acerca de nossa condição contraditória,   com seus contos que acontecem no Sul da Bahia,  exerce o que a crítica costuma chamar de regionalismo de espírito. Demonstra essa feição   nos três primeiros contos  de  Mar de Azov .
         No conto que dá título ao livro, salta aos olhos que a sequência de imagens, metáforas  e alusões poéticas preenchem o cenário desse seu  tom íntimo, emotivo, transfigurador da paisagem circundante  em conexão sensitiva com a paisagem  interior dos personagens, imersos nas águas da memória e do curso do tempo, que flutua e desliza  no presente e passado. Se uma paisagem marinha lá fora bate,  volta, bate, despejando seus rolos de algodão na praia,  já outra,em sintonia com a zona interior do personagem,  derrama suas ondas de sofrimento nos recônditos da alma. Impõe  seu timbre  diante da impotência de se reverter o drama, em nível sofrido,  de outras águas em permanentes conflitos.   
           O contista refere-se a um mar que  existe lá fora não como adorno no exercício luminoso do estético. Ele recorre ao cenário que ressoa lá fora  como  um elemento que despeja na  trama  projeções da  vida  examinada com  perdas nos horizontes pessoais do personagem. E assim aproveita esse mar que em cima ilumina e embaixo ronca como um bicho  fantástico  para interligá-lo  àquele tempo interior do adulto, bem como  do menino  ao lado do pai, nas bicicletas ambos  pedalando  pela praia, rumo ao Pontal dos ilhéus. No  menino  que é  socorrido pelo pai quando sofre o acidente e quebra o braço. No  adulto  que vem do Rio de automóvel em busca do aconchego da mãe, que já está morta.  Nesse mesmo tempo dolorido,  que, fundido em dois planos,  do  passado e do presente, como se fosse uma coisa só, na duração de um só instante, narra-se  a viagem daquele homem  que veio de longe, escolhido pelo Anjo da Morte,   em busca do afeto materno.  Há que ressaltar os lances pungentes em que no tempo interior do adulto reencontram o menino, nesse retorno em que  a consciência sabe que a mãe  permanece no primeiro,  mas que de fato ela já não mais existe.
        Há que destacar ainda  em Mar de Azov certas preciosidades que apontam para nossa identidade em busca de uma explicação  do que somos no enigma da vida. O menino pergunta ao pai o que é ser homem, e o pai responde que é assumir a realidade da vida. Em outro trecho, o pai mostra que viver é difícil “... como transportar na mão um copo cheio de água,  por exemplo.” O menino observa que a água não pode derramar, o pai diz que não deve derramar, mas transborda, por mais que se tenha cuidado. A tentativa de recuperar nossa identidade  que se perde no tempo é a  mostra corajosa e digna do escritor que acumulou experiências, que sabe manejar  com sobras sua  capacidade artística  para que nos force a pensar e sentir a vida.  Sábios são os mais velhos, os que armazenaram  erros e aprenderam  com seus desacertos, o pai disse ao filho. 
         “Zepelins”, como o conto “O Outono de Nosso Verão”, do livro Massacre no km 13, é uma narrativa primorosa sobre o tema do amor.  É a história da implantação de um  núcleo integralista em Itabuna, lá pelos idos da Segunda Guerra Mundial. O Major  Taborda, na condição  de chefe regional da ideologia extremista, é o incumbido  da missão e traz com ele a esposa Isabel, de traços brancos definidos, vivências apuradas em outros mundos civilizados e que por isso não se ajusta ao tédio que lhe causa a cidade pequena. O clima amoroso, que se faz real, entre o moço da cidade interiorana e Isabel, a de “colo generoso sem ser farto”, culmina em ardentes encontros carnais, que não se atritam com qualquer espécie de constrangimento. O desfecho surpreendente da narrativa  serve para desmistificar  o caráter sem sentido quanto mais niilista de ideologias  extremistas.
        Em “Começo de Vida”, a  vida se faz em meio a frustrações e amarguras. O conto mais próximo da narrativa tradicional, de princípio, meio e fim, narra os conflitos de pai e filho, que resolve sair de casa pelo mau trato que lhe é reservado nas relações cotidianas em família. A ausência de valorização do íntimo impele o filho para desejos que se fazem vontade forte, na direção de torná-lo um dia um  homem rico. Quando isso acontecer, a revanche será realizada contra o pai, que sempre o rebaixou  na aventura deprimente  da vida. 
         Das narrativas que integram Mar de Azov a mais complexa na estrutura e urdidura ficcional  é a que se apresenta em  “As Dríades”. Qual o termo que se aplica melhor  para delimitar esse instigante texto de ficção? Apenas o de  ficção? O de onírico, que se desenvolve por meio de imagens e alusões  sem contornos precisos?  Ou o de simples fantasia em que entra o transplante do mito grego para os bosques dos cacauais no sul da Bahia?  Pastoral  sob o influxo do clima gerado pela contemplação dos sentidos diante da terra e das águas, de onde provém  a vida? Devaneio com sua melodia líquida, de inspirações contrastantes, descrições que se referem  à roça de cacau como uma catedral bela e estonteante, sem  princípio nem fim, nas camadas nebulosas e vítreas?  Ou tudo isso reunido no aglomerado sutil de uma narrativa que já nasce belíssima em nossa moderna literatura?     
As Dríades na mitologia grega eram divindades que habitavam  os bosques.  Nasciam nas árvores onde residiam. Não eram imortais como outras divindades que habitavam a floresta. Constituíam uma classe das ninfas, havendo outras como  as Naíades, que governavam os regatos e as fontes; as Oréades, ninfas das montanhas e grutas;  as Nereiadas, ninfas do mar. Essas três eram imortais. As Dríades eram companheiras de Pã , o deus da Natureza, que significava no universo,  por extensão,  tudo. As Dríades morriam como as árvores.
        A imaginação dos gregos estendia-se para o povoamento por divindades de todas as regiões da terra e do mar. Os fenômenos naturais, que  os gregos atribuíam aos deuses,  passaram a ser explicados depois pelas leis da ciência. Mas o encanto que a ilusão dessa mitologia criou permaneceu no imaginário de poetas e ficcionistas. Conta-se na mitologia do paganismo  que Erisíchton era um homem rústico, de gestos compulsivos,  que resolvera  profanar com um machado um bosque consagrado à deusa Ceres. Havia no bosque um carvalho, que de tão velho e enorme era comparável a uma  floresta inteira. Nele eram colocadas guirlandas  votivas e inscrições manifestando gratidão  à ninfa que morava na árvore. Um machadeiro foi incumbido pelo homem grosseiro para  derrubar o carvalho. Ele resistiu à ordem que lhe foi dada, em razão do  caráter sagrado da velha árvore. Enraivecido com a atitude do machadeiro, Erisíschton ergueu o machado  e desferiu golpes  que atingiram  o corpo e decepou a cabeça do homem desobediente. A seguir, Erisíchton derrubou com o machado o carvalho,  mas  foi castigado pela Fome, a pedido de Ceres, que escutou  os clamores das Dríades. De tanta fome, que nunca conseguiu saciar, Erisíchton morreu devorando todas as partes de seu corpo.
         O aproveitamento da mitologia grega em nossas letras atraiu   Sosígenes Costa  na elaboração de  Iararana, poema narrativo de temática indianista sobre a  mítica do cacau. Na epopeia curiboca, Sosígenes Costa  introduziu o personagem Tupã-Cavalo, um centauro, que veio de Portugal, depois de ter sido expulso da Grécia. Elementos da tragédia grega também foram compartilhados por Adonias Filho, que os transfigurou em seus romances e  histórias, cuja ação desenvolve-se na infância da civilização cacaueira baiana. Textos ficcionais desse escritor maravilhoso exprimem contradições, paradoxos, dúvidas, possibilidades de se refletir sobre a existência, o cosmos, as situações de estarmos aqui  em nossas relações sociais e com o destino dentro de uma geografia específica, de zonas primitivas com naturezas bárbaras.
         Segundo Everardo  R. G. Rocha, o  mito faz parte daquele conjunto de fenômenos que espelham uma coisa inacreditável, impossível de ser real, com suas passagens muito antigas, próprias de uma tradição. O aspecto sedutor do paganismo quanto ao mito das Dríades   vai atrair  o contista Hélio Pólvora, que o faz migrar numa narrativa perfeita  para a  zona cacaueira baiana.  Nesta poética das águas, o contista não  propõe figuras de contornos definidos. O tempo dessas ninfas, destituídas de traços  corporais precisos,  atravessa as quatro estações numa fusão de atemporalidade onde “o tempo é o mesmo, a tarde igual”.
            Magdala  é filha e, ao mesmo tempo, mulher de seu pai. Afugenta todas as mulheres que antes foram dele. Não se sabe distinguir se  Edméa, Laura, Helena são todas e uma só. Magdala tem “imagem idêntica a da mulher  que se despe e entra na água”. Podemos pensar que o  que Hélio Pólvora pretende dizer nessa narrativa está articulado com os tecidos verbais da metáfora, e do próprio mito,  tanto é o texto feito de alusões com uma mensagem que não se faz codificada  literalmente. Nessa pastoral constituída em sua matéria de fios melódicos,  na tessitura da palavra que desliza pelas zonas suspensas do sonho, há alusões de que não existem vestígios de água em outros planetas do sistema solar. Até mesmo nas nuvens de Vênus não se deve confiar que elas contenham água.
       As Dríades de Hélio Pólvora descem para o ribeirão, voam em bando, passam esgarçadas, residem no tronco dos cacaueiros. São furtivas, interferem como por encanto quando menos se  espera. Forçam em seu poder feminino que sejam contempladas. Suas atitudes furtivas  confundem-se  no córrego,  “vestido solto em cima da pele, colando-se então nos abismos de seus corpos quando saem a escorrer água, ou então espojando-se na água, em algazarra, como éguas que em tardes de calor e poeira se espojam suadas no potreiro”. (pg. 97).
       Para o crítico Fausto Cunha, na última aba do livro,  trata-se de uma pequena obra-prima, de riquíssimo tecido verbal. A memória e o imaginário fundem-se nos presságios da morte, que é a da natureza em nosso planeta e a de planetas distantes. Dos acordes dessa melodia com  estofo de uma pastoral, localizada nas roças de cacau da Bahia, de fato  desprende-se  uma das páginas encantadoras da  moderna ficção brasileira.


                                
                        Referências Bibliográficas

POLVORA, Hélio. Mar de Azov, contos, Primeiro Lugar do Prêmio  Bienal  Nestlé de Literatura Brasileira, Editora Melhoramentos, São Paulo, 1986.
----------------------- Massacre no km 13, contos, Edições Antares, Rio de Janeiro, 1980.
COSTA, Sosígenes. Iararana, Editora Cultrix, São Paulo, 1979.
GRASSI, Ernesto. Arte e mito, Livros do Brasil, Lisboa,  sem data.
ROCHA, Everardo P. G. Rocha. O que é mito, Editora Brasiliense, São Paulo,              1985.
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia, Publicações Ediouro, Rio de Janeiro, 2001.



*Cyro de Mattos é contista, novelista, ensaísta, poeta, cronista  e autor de livros infanto-juvenis. Autor premiado no Brasil e exterior. Tem  livro publicado também em Portugal, Alemanha, França  e Itália. Mais de 40 prêmios literários e, entre eles, o Prêmio Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras, com Os Brabos, contos, o Prêmio Associação Paulista dos críticos de Artes, com O Menino Camelô, poesia infantil, e o Prêmio Internacional Maestrale Marengo d’Oro, Genova, Itália, com o livro Cancioneiro do Cacau. Finalista do Prêmio Jabuti três vezes.