EDIÇÃO ESPECIAL: ALITA EM TEMPO DE FUTEBOL E SAUDADE


        Tanto
              
                  




                 

 
  BA-VI EM FAMÍLIA

*Aleilton Fonseca


Vamos presumir, sem risco de errar: um casal de namorados tem mais o que fazer do que discutir futebol. Eu não conheço marido que ouse discutir com a mulher se a escalação de seu time está correta, se o decantado craque não passa de um perna de pau, se o juiz errou e outras coisas que tais. Se os amores vão bem, é melhor deixar o futebol de fora. Aí vale o ditado: “em time que está ganhando não se mexe”. Ora, para que entrar de carrinho e acabar levando um cartão vermelho?
Pois assim o sujeito fez. Desde que foi, pela primeira vez, à casa da namorada, num domingo de futebol, dia de jogo Bahia e Vitória, percebeu que todos ali, ou seja: pai, mãe, irmão, irmã e até o cachorro... todos eram tricolores doentes: Bahia, o esquadrão de aço: o campeão dos campeões, segundo alardeavam.
Ocorre que ele, o namorado, torcia contra. O sujeito, nas treitas, cheio de jogadas para o lado da moça, acautelou-se na retranca. Para que ia revelar que era torcedor do Esporte Clube Vitória, arqui-inimigo dos “Bahêa!”? Calado estava, assim ficou, de olho na jogada. Não teria que armar barreira, se não cometesse uma falta perigosa. Nem ia cometer um pênalti desnecessário.
A tática funcionou. De simples paquera, o torcedor rubro-negro foi promovido a namorado. O jogo amoroso avançava, ele tabelando calado, de olho no regulamento. Aos domingos, aguentava o papo de futebol na casa do sogro. Falavam horrores, pilheriavam com o time rival. Ele se fazia de alheio, tocava bola com jeito, fazia um meio-de-campo, atento na defesa. Se era indagado, opinava favorável. Sim, o Bahia era um grande time. Sim, o juiz era ladrão. Ia levando a coisa na base do zero a zero.
Em dia de clássico Ba-Vi, ele sabia que a família toda ia ao estádio da Fonte Nova. Iam para o meio da torcida do Bahia. Ele era convidado, mas sempre dava uma desculpa. Inventava um motivo qualquer, nunca podia ir ao jogo. Mas é claro que ia, sim. Ia escondido. Ia para o outro lado do estádio. Torcia, clandestinamente, para o seu time do coração.
O campeonato chegou ao fim. O Bahia campeão, e toda a família alegre. Ele ficou noivo. Refletiu e analisou se estava na hora de contar a verdade. Logo concluiu: qual nada! Ninguém muda a tática de jogo sem um forte razão. Aliás, o segredo não é a alma do negócio? 
Um dia se viu casado. O bolo, confeitado de azul, vermelho e branco. O enfeite era um casalzinho trajando o uniforme tricolor. Ele aguentando firme o abuso daqueles detalhes, e os risos de mofa de seus amigos, que sabiam da trama e o gozavam toda segunda-feira no trabalho.
Casado, agora, mais do que nunca, fazia parte da família tricolor. Era então intimado a acompanhar o grupo ao estádio. Se antes recusava o convite, inventando uma desculpa, agora a cobrança e a pressão eram insuportáveis. Acuado na defesa, ele não tinha saída. Não dava mais para jogar pelas laterais. Teve de encarar o jogo de frente, para não perder de WO.
Os cunhados queriam saber. Por que ele não ia ver o jogo ao vivo? Como incentivo, o sogro lhe deu uma camisa 10 do tricolor, a oficial, um irrecusável presente de aniversário. Com essa marcação homem-a-homem, ele acabou tendo de ir à Fonte Nova – uniformizado – ouvir gritarem Bahêa!, no meio da grande torcida.
Ora, aquilo era demais! Ele tinha de ser homem! Tinha de confessar sua condição de torcedor do time inimigo. Mas, para que magoar aquela linda mulher tão fanática pelo Bahia? Para que infelicitar aquela família tricolor tão calorosa? Eles torciam unidos e deixavam isso claro, fiéis ao hino do clube:
– Somos da turma tricolor! Somos a voz do campeão!
Era uma verdadeira goleada. Era dose pra leão nenhum botar defeito. Aquilo precisava acabar! Aliás, em futebol, há sempre um dia em que cai o tabu.
E esse dia chegou. Era tarde de futebol, final do campeonato. Como o jogo era no estádio do Vitória, a família tricolor preferia assistir em casa, pela TV.
– Não piso em toca de gato manso, – desdenhava o chefe da torcida.
A família, reunida em festa, todos movidos a churrasco e cerveja, prontos para comemorar “mais um título de glória”. O torcedor oculto chegou, com a mulher uniformizada, mas ele sem a camisa 10 do Bahia. Esse incidente já foi motivo de protesto por parte do sogro e dos cunhados. Cadê a camisa, rapaz? E ele nervoso. E calado como pedra.
– Tá nervoso? Sossega, o Bahia hoje dá de três a zero! – “tranquilizou-o” o sogro.
Era a grande final do campeonato. E o jogo começou truncado, cheios de faltas no meio-de-campo. Ia rolando no empate. Primeiro tempo, um zero-a-zero tenso, um jogo amarrado, com lances ríspidos e cartões amarelos. Na sala, diante da TV, todos nervosos, iam roendo as unhas. Ele no meio, calado, tão nervoso quanto os “Bahêa”, mas o coração batendo firme pela sorte do seu time do peito.
Então houve um gol. O locutor exclamou. A torcida explodiu. E era gol do Vitória. Não deu pra segurar. Escapou-lhe a alegria num grito há tanto tempo contido, clandestino, abafado:
– Gooooollllll!!!
Ele pulava, alegre e liberto, no centro da sala, em meio ao perplexo silêncio dos outros, estatelados nas poltronas. Os parentes o encararam, boquiabertos e contrariados.
Que decepção deplorável! Ah, não! Agarraram-no pela gola, puseram-no para fora de casa e trancaram portas e janelas.
E lá fora começava a chover forte.
– Abram! Sou Vitória sim, e daí? – ele enfim assumia sua verdadeira condição.
– Cartão vermelho! Fica aí no chuveiro, traidor!
E daí em diante, dentro de casa, era só silêncio e mais nada.
O jogo era disputado, agora mais corrido, imprevisível. As jogadas de perigo deixavam os torcedores em constante agonia. O locutor se esguelava: bola raspando, bola na linha, bola na trave. Desse jeito, logo ia sair um gol. E saiu mesmo. O Bahia empatou o jogo, com um golaço. O silêncio virou gritaria, um braço assomou à janela para soltar os fogos de comemoração.
– Deixa eu entrar, poxa! – protestou o expulso.
– Vá procurar sua turma, gaiato! – respondiam.
E o jogo seguia duro, cada chute ao gol era uma faísca. Eram lances de perigo lá e cá, a torcida devorando as unhas, os nervos à flor da pele.
       A partida estava chegando ao fim, e o empate persistia. Mas, como dizem os filósofos da bola, o jogo só acaba quando termina, ou seja, quando o juiz apita e aponta o meio-de-campo. E foi assim que, no último minuto da partida, um atacante do Bahia invadiu a área, passou pelo goleiro e virou o jogo:
       – Gooolllll. Goooolll. Bahêa! É campeão! É campeão! Bahêa!
       A casa, a vizinhança, o bairro estrondavam. Era um coro de gritos e fogos que espocavam nas redondezas, na cidade inteira. A porta e as janelas se abriram, eram fogos, gritos, sorrisos, abraços, emoções. O torcedor derrotado, entregue à chuva fria da tarde, mal acreditava no que via. De repente, os parentes o abraçaram, trouxeram-no para dentro, com beijos e sorrisos afáveis. Deram-lhe um copo de cerveja, vários tapinhas nas costas, na maior gozação.

– Venha comemorar com a gente, meu bem! – pilheriou a esposa.
– Viu aí, Vitorinha incubado! – gargalhou o cunhado.
Fim de jogo. A família tricolor comemorava o triunfo. Todos gritavam numa só voz, e na cara do pobre parente rubro-negro, zonzo, sem graça e todo molhado:
– Vicetória! Vicetória! Vicetória!


In: FONSECA, Aleilton.  A mulher dos sonhos e outras histórias de humor. Itabuna: Via Litterarum, 2010.



*Aleilton Fonseca é escritor, poeta, professor da UEFS, membro das Academias de Letras da Bahia, de  Itabuna, do PEN Clube do Brasil e da UBE-SP 








RELIGIÃO, PAIXÃO E FEBRE EM CYRO DE MATTOS

                                                                           *Antônio Lopes


        Dentre as muitas facetas do intelectual Cyro de Mattos (prosador, poeta e autor de livros infanto-juvenis) sobressai-se a preferência pelo mundo polêmico das antologias. Já as editou de contos brasileiros de bichos, de contos baianos, de poesia regional, de prosa e poema vários feitos em Ilhéus e Itabuna. As seleções, as de Cyro como as demais, refletem o gosto e o conhecimento do organizador e não raro produzem caras feias e narizes torcidos daqueles que ficaram de fora.
        Mesmo  sabendo do potencial de insatisfação existente nestas coleções, Cyro passa ao largo da polêmica e segue sua rota, já contabilizando, com este meio, grandes serviços prestados às letras. Bastaria dizer que a antologia Poesia baiana do século XX, do respeitável Assis Brasil, lista, graças à colaboração de Cyro, vários poetas ligados à região cacaueira da Bahia, sabendo-se que muitos deles ficariam de fora, não fosse esse procedimento. Lá estão, apesar do choro soteropolitano, Sosígenes Costa, Jorge Medauar, Aleilton Fonseca, Firmino Rocha, Fernando Salles, Walker Luna, Valdelice Soares Pinheiro, Telmo Padilha, Ildásio Tavares e Carlos Roberto Santos Araújo. Graças a Cyro de Mattos.
        A mais nova antologia de Cyro (que se torna muito oportuna neste momento em que a pátria está, novamente, de chuteiras) é Contos brasileiros de futebol (L.G.E. Editoria – Brasília), em que ele relaciona (como se disse, atendendo a seu conhecimento e preferência) dezenove textos de dezenove autores, incluindo o próprio Cyro (“O goleiro Leleta”). No time, nomes muito conhecidos do leitor médio, a exemplo de Deonísio da Silva, Dias da Costa, Edilberto Coutinho, Hélio Pólvora, Moacir Japiassu, Salim Miguel e Sérgio Sant´Anna. Mas há autores que surpreendem os leitores não “profissionais”, como Aércio Consolin (“Jogo encoberto”), Caio Porfírio Carneiro (“A sombra”), Edson Gabriel Garcia (“O goleiro do time”) e Antônio Barreto (“Estádio”), para citar apenas alguns. Como se querendo deixar mais explícito seu velho amor de menino pelo famoso esporte bretão, Cyro dedica a antologia, in memoriam, a Garrincha, “pela alegria que nos deu”.
        Na apresentação, o organizador de Contos brasileiros de futebol tem o cuidado de relacionar autores ilustres que já se debruçaram sobre este tema, aparentemente menor. E lembra das “crônicas admiráveis” de Nelson Rodrigues, Armando Nogueira, Rui Carlos Osterman e Roberto Drummond. E que José Lins do Rego (fanático torcedor do Flamengo) tratou do assunto no romance Água-Mãe, o que também foi feito por Ewelson Soares Pinto e Renato Pompeu, assim como Carlos Drummond de Andrade (que dedicou versos a Pelé), João Cabral de Mello Neto (pelos elogios que derramou sobre Ademir Menezes, do Vasco, e Ademir da Guia, do Palmeiras) e ainda Vinícius de Morais, com um soneto sobre Garrincha, que o organizador classifica como “obra-prima”.
       Como Cyro não nos deixa esquecer, grandes escritores não se descuidaram dos elementos de paixão, febre e misticismo que habitam o retângulo mágico dos campos de futebol, espaço que os locutores românticos apelidaram apropriadamente de tapete verde.


*Antônio Lopes é jornalista e pertence às Academias de Letras de Ilhéus e Itabuna


Trechos

“Febre. Religião. A maior paixão popular. Que bonito a torcida no estádio superlotado. As bandeiras desfraldadas. A apoteose de não sei quantas gargantas que explodem no ar um só grito de gol. Delira a torcida, vendo a rede balançar (...).
Somos a pátria de chuteiras, os melhores do planeta, por cinco vezes fomos campeões mundiais de futebol. Todas as conquistas foram em gramados estrangeiros, bom não esquecer. Uma onda movimenta-se incontrolada, de canto a canto desse Brasil tropicalista. A marchinha bate nos tímpanos, dizendo que “o brasileiro é bom no samba, é bom de bola”. A paixão pelo futebol fascina o brasileiro desde pequeno, no campo improvisado de algum terreno baldio, na várzea ou até no meio da rua”


(Cyro de Mattos, Introdução)


“O velho rádio pipoca na sala de jantar. A cristaleira estremece. No quintal os ramos da caramboleira vergam, repolhos fecham-se como conchas sobre os talos nodosos, sapos espreitam as sombras do entardecer. Galinhas arfam de bico aberto sobre a poeira, parecem chocas. A tarde suspensa estagnada aguarda o berro do desempate. Bigode, Bigode, eu te reconheço. Quem te mandou esquecer os carrinhos de half-back da várzea? Foi o técnico Flávio Costa? Ficas a ciscar na lateral esquerda, em torno de Gighia, olha que o tempo passa, Gighia é rápido, vai levando, avança pelo flanco direito, abre-se ali um corredor, de repente Gighia finge que vai cruzar para Shiaffino ou Miguez, ou então passar a redonda a Julio Perez, mas resolve chutar, o chute sai rasteiro, aflorando o gramado, entra no canto esquerdo de Barbosa, Uruguai 2 a 1 (...).
 - Eu vou pra esquina, junto do poste. Quando o Brasil empatar, você levanta o braço.
 - Combinado.
Para mim, ele continua abraçado ao poste, pensa hoje aquele menino de 1950”.


                                                        (Hélio Pólvora, “O gol de Gighia”)





 



GARRINCHA NA DESPORTIVA

*Cyro de Mattos 



        Antes de me tornar advogado, jornalista com passagem em O Jornal e Jornal do Comércio, dos Diários Associados, no Rio, escritor com 38 livros publicados, entre volumes de crônicas, poesia, ficção, obras para o público infanto-juvenil, premiado em concursos importantes, de âmbito nacional e internacional, fui um dos mais apaixonados torcedores do futebol amador de Itabuna. Exatamente naquele período em que jogadores amadores foram considerados como craques e heróis porque defendiam as cores de seu time com a alegria de jogar e o desejo de vencer. E com isso trouxeram conquistas marcantes na história futebolística de Itabuna.
       É preciso ter vivido anos para saber que nada mais rico na vida de uma pessoa do que a psicologia de seu povo. Nada significa mais na vida quando formada de lembranças boas, trazidas do chão de nascimento. As pessoas, a paisagem, os bichos, o rio, o povo, cenas. Onde quer que você esteja vai levando dentro de si a alma do azul tão azul porque tudo ali estava alagado de azul. Nem sequer você percebia que o tempo passava como as nuvens em redor da terra. Os dias, as semanas, os meses não permaneciam para sempre. Infelizmente. Não é preciso fazer algum esforço para saber o que digo. Sou um autêntico filho de Itabuna, no sul da Bahia, assumidamente um “papa jaca” filho dessa terra dadivosa.
        Costumo dizer que sou um torcedor privilegiado. Vi de perto Pelé e Garrincha fazendo jogadas antológicas no tapete verde dos gramados brasileiros. Mas foi no velho Campo da Desportiva que tomei contato com os primeiros craques de futebol. Um futebol amador quando então o próprio técnico era o preparador físico. A preparação física consistia em fazer alongamento e dar voltas seguidas pelo passeio do jardim da Praça Olinto Leoni, próximo à beira do rio. Um futebol amador que, por incrível que pareça, teve jogador com recursos técnicos notáveis. Vários deles poderiam envergar a camisa de um grande clube brasileiro, se fosse hoje quando os meios de comunicação são outros. Até mesmo poderiam jogar no exterior.
       No livro “O Goleiro Leleta e Outras Fascinantes Histórias de Futebol”, que me deu o Prêmio Nacional Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, do Rio de Janeiro, das quatro histórias, que o editor rotulou de fascinantes, três aconteceram em minha cidade. Uma delas, “O dia em que vi Garrincha jogar”, numa espécie de narrativa cativante que se apóia na memória inventada, a história recria a passagem do craque genial por Itabuna a a emoção de um menino, que mal conseguia dormir na semana, na expectativa de ver jogar o legendário Botafogo carioca no velho Campo da Desportiva.
        Veja aí um trecho da história: “De repente um silêncio invadiu o estádio da Desportiva por todos os cantos. Uma coisa diferente que eu não sabia explicar tomou conta de todo mundo. Comecei a suar frio e a ficar com a respiração quase presa. O coração deu pra bater quase acelerado em seguida. Os inumeráveis rostos dos espectadores estavam voltados para o portão que dava acesso à arquibancada. Por ali estavam entrando o time do Botafogo e também a Seleção de Itabuna, lado a lado. Escutei um grande murmúrio vindo do público e depois ruídos que começaram a aparecer com vozes confusas. Foi então que vi surgir ali, diante de meus olhos crescidos, em fila indiana, os jogadores do botafogo com as coxas brilhantes, havia um cheiro forte de linimento, a camisa preta e branca com listras verticais, a estrela solitária no peito. As chuteiras lustrosas, as meias com a cor cinzenta, o calção preto. Vi passar, bem perto de onde estava na arquibancada, primeiro Nilton Santos, que era o capitão do time, depois Didi, e atrás deles, Zagalo e Garrincha, que parecia um meninão.Não parava de sorrir e acenar para os muitos torcedores que gritavam o nome dele. Não agüentei o susto quando vi passar bem perto, eu quase tocando nele. Ainda trêmulo, a voz meio engasgada, fiz um esforço e gritei:Garrincha! Garrincha! Garrincha! – ele me acenou, riu e fez com o dedo polegar um sinal indicativo de que tudo estava legal. O foguetório explodiu louco...”
        Torcedores diziam que a Seleção de Itabuna iria perder de seis a zero, no mínimo. Outros chegavam a afirmar que o escore seria de dez a zero para o Botafogo. O clube carioca tinha craques famosos no cenário nacional. Era a base com o Santos de Pelé da Seleção Brasileira, que se sagrou campeã em gramados da Suécia, em 1958. A seleção itabunense tinha bons nomes como Zequinha Carmo, Florizel, Santinho, mas eram jogadores amadores, não podiam fazer frente aos cracões do Botafogo.
        Tanto isso era verdade que o Botafogo já ganhava de dois a zero, aos quinze minutos de jogo, com os dois gols de Garrincha. Lembro-me como hoje que no segundo gol ele bateu toda a defesa da Seleção de Itabuna, entrando no gol com bola e tudo. Mas para sorte nossa de repente caiu um aguaceiro, alagando o gramado da velha Desportiva. Dali em diante praticamente não houve mais jogo. No segundo tempo, a bola que foi chutada para o alto caiu numa poça de água. Zequinha Carmo, um goleador oportunista, não perdeu tempo: chutou forte e fez o gol. O que se viu depois foi uma bola ficar quase sempre parada na poça, escorregões, quedas engraçadas no gramado cheio de lama. E o resultado de dois a um para o Botafogo tornou-se histórico para a seleção de Itabuna, em razão da pequena diferença no placar.
       À noite oferecerem um jantar para os craques do Botafogo, no clube social da cidade. Eu fiquei ao lado de Nilton Santos, Garrincha e Zagalo. Escutei Nilton Santos dizer que enquanto houve futebol, até os vinte minutos, tinha visto bons jogadores da seleção local, apesar de amadores.


*Cyro de Mattos é escritor e poeta premiado no Brasil e no exterior. Pertence às Academias de Letras da Bahia, de Ilhéus e de Itabuna.







  ECOS DO CAMPO DA DESPORTIVA

                               *Cyro de Mattos
                                            

Recebi e-mail de Florisvaldo Mattos, grapiúna de Uruçuca, antiga Água Preta, jornalista e consagrado  poeta baiano. Leia o que ele mandou dizer:

“Vivamente interessado, até curioso e encantado, logo que recebi hoje, bailei (como dizem os argentinos) por toda a extensão de seu O Velho Campo da Desportiva, lembrando de coisas a que assisti, acompanhei, e pessoas, então jovens, com as quais convivi, e até com elas joguei em peladas vespertinas naquele templo de emoções juvenis, em companhia de Vitório e seu irmão, o vitorioso e consagrado no futebol amador, Zequinha Carmo, ambos meus colegas no Ginásio da Divina Providência. Joguei também peladas com mais dois ali, embora não lhes tenha acompanhado as carreiras vitoriosas, desde que, quando brilharam  na seleção de Itabuna e em clubes, eu já não andava por Itabuna, formado e fazendo jornalismo em Salvador. Joguei  também na Desportiva com Santinho e Tombinha.  No entanto, presenciei pelo menos dois eventos daquela saga aqui na capital: quando da conquista do torneio intermunicipal na Fonte Nova, em 1957 (tinha que estar lá por questão de honra e fidelidade a origens adolescentes), e, em 1961, quando a seleção jogava uma partida, no Campo da Graça, então destinado a jogos da divisão de amadores, contra seleção municipal cujo nome não guardo, mas lembro que a vitória pertenceu a Itabuna, com Zequinha Carmo goleador.
“Suas narrativas me trouxeram novidades interessantes, mas as maiores foram  referentes ao jogador Nandinho (Epaminondas da Silva Moura), que jogou no Flamengo, com muita classe e fama nos anos de 1941, 42 e 43, sendo duas vezes campeão, na avalanche para o tricampeonato de 1944. Primeiro, não sabia que ele era itabunense; nem que era tio do saudoso Santinho. Sabia que jogara no Bahia. Tanta fama conquistou este craque, malabarista da bola e goleador, que talvez seja o único futebolista baiano a figurar em letra de samba, como neste que foi sucesso na época (1941) na voz do grande Moreira da Silva - "Doutor em futebol", samba de Waldemar Pujol e Moacyr Bernardino -, em cuja letra protagonizam dois versos, acentuando a ginga da interpretação, pois, numa tirada de humor malandro, o personagem promete ser "um craque verdadeiro, um perigoso artilheiro, e ser sucessor de Pirilo" (grande goleador daquele Flamengo), para então adiante avisar: "suplantando o sêo Nandinho", no drible de corpo. Fui ver no Google, Nandinho nasceu em 8 de novembro de 1922, não em 1921, mas não encontrei data de falecimento dele. Estará vivo ainda? Como resgate de uma saga esportiva, seu livro é um primor de memória cultural e sentimental. Em tempo: também tive dúvidas quanto ao time em que jogava o craque mineiro Barbatana, um primor de centromédio, hoje meia de ligação, eu vi jogar. Suponho que se chamava Metalusina. Parabéns, grande, e um abraço. Florisvaldo”.
Já em outro e-mail opina o poeta e jornalista Florisvaldo Mattos sobre a essência sensitiva do meu  livro O Velho Campo da Desportiva: “É um livro precioso, para espíritos que se associam a essa lembrança  do passado itabunense recente, ditado pelas vozes do coração e do amor à terra e sua  gente”.
Adianto ao leitor que O Velho Campo da Desportiva não é um livro de história, que precisa relacionar os fatos com neutralidade, seqüenciando-os com precisão datas e situações. Trata-se de livro de memórias, que relata e, ao mesmo tempo,  recria o que o autor viveu com a alma sensível de quem participou, viu e  ouviu sobre a vida em determinado lugar. Não é um livro que arrolou  pessoas e fatos para servir de documento para quem queira abordar o assunto sob bases históricas. É formado de gente e suas emoções,   que ficaram latejando na alma do autor e que emergem no livro, hoje, através dos sinais  visíveis da escrita  para tocar o coração do leitor.  Busca recuperar um tempo perdido sem querer agradar a pessoas, sobreviventes daquela saga.   
Quanto ao amigo Florisvaldo Mattos, grapiúna de Uruçuca, antiga Água Preta, homem generoso, sem ressentimentos na dura lei da vida, desprovido da inveja e intriga, jornalista  lúcido, que sabe com equilíbrio  analisar e aproximar dos fatos as pessoas,  poeta humaníssimo, de linguagem cativante, rara inspiração, reconhecido nacionalmente,  só me resta agradecer comovido suas impressões favoráveis ao  meu livro O Velho Campo da Desportiva. As memórias relatadas e as literárias,  reunidas  no livro, com feição de crônica, são dedicadas aos que fizeram daquele campo de futebol amador  um lugar de encanto, lazer e emoções.  


*Cyro de Mattos é escritor, poeta e advogado aposentado.  


NOTA: A antologia "Contos Brasileiros de  Futebol", seleção, notas e prefácio de Cyro de Mattos, publicada pela LGE Editora de Brasília, foi aprovada pela Comissão Julgadora do Plano Nacional da Biblioteca Escolar, do  MEC, para que o livro seja distribuído para as   bibliotecas das escolas brasileiras. Para essa finalidade, O MEC adquiriu 20 mil exemplares do livro à LGE Editora. 




DIDI E GUIOMAR

*Hélio Pólvora


     Há (ou havia) no Rio de Janeiro, num dos fundos da Rua do Ouvidor, uma livraria chamada Folha Seca. Dou-lhe uma, dou-lhe duas... Acertou quem supôs uma homenagem a Waldir Pereira, mais conhecido como Didi, natural de Campos, libriano nascido no meu ano e mês, e seis dias mais novo.
     Predominam na Folha Seca livros esportivos, mas há leitura de todos os gêneros para todos os gostos. Didi está ali, biografado por Péris Ribeiro. Foi o criador daquele singular efeito em chute de bola parada que, se lhe aumentou a fama, deu-lhe para o resto da vida dores na coluna. Depois de calcular a velocidade do vento, medir a estatura do goleiro adversário e estudar a formação da barreira, Didi desengonçava a coluna para o arremesso. A bola ultrapassava a barreira e dava a impressão de encobrir a meta. De repente, fazia uma curva e descaía qual ferrugenta folha outoniça que entra a planar, ao sabor da brisa, até cair onde bem quer.
     O goleiro nem se mexia, perplexo. Atribuem ao comentarista Luiz Mendes a expressão “folha seca”, que o locutor Oduvaldo Cozzi, na sua exuberante retórica digna de uma Academia de Letras, popularizou.
  Tímido e educado fora dos campos, o negro Didi transformava-se, de chuteiras, em Príncipe Etíope de Rancho, segundo Nelson Rodrigues. Bailava com a graça e leveza de uma borboleta de verão. Esticava bolas de trinta metros, que chegavam milimétricas ao destino, ou gingava com elas em terreno de duas polegadas quadradas. E sempre altaneiro, elástico, com um olhar de quem, do alto da gávea, avista terras desconhecidas e se apresta à conquista. Didi arrastava nos gramados o pesado manto escarlate de sua desenvoltura reinol.
      Nem sempre jogava bem, como, de resto, todos os mortais. Seu problema (ou sua paixão) chamava-se Guiomar, atriz por quem se apaixonou e o fez largar a primeira mulher. Guiomar era a Amada e a bola. Era a síntese feliz e infeliz de todas as mulheres. Crítica e ciumenta ao extremo, não desgrudava dele, da “cortadora proa vigilante” de suas chuteiras. E uma vez, enfurecida, cortou a tesoura todos os ternos e gravatas com que o grande meia-direita se pavoneava.
     Didi teve em 1959 e 1960 a honra de compor no Real Madrid um ataque fulminante: Del Sol, Didi, Di Stéfano, Puskas e Gento, o penúltimo da famosa seleção húngara de 1954. Havia ainda Kopa, da seleção francesa que o Brasil goleou por 5 x 2 na Suécia, em 1958. Didi tinha 30 anos e ainda futebol pela frente Se não ficou mais tempo com a camisa 8 (a mesma de Kaká), se não brilhou mais foi por causa de outra ciumeira — a do hermano Di Stéfano, que não gostava de dividir glórias, principalmente com um negro brasileiro campeão do mundo, muito antes que a Argentina fosse também campeã.  Melhor para Didi, que voltou a ser campeão em 1962.
     Já naquela época havia forte preconceito racial no futebol. “El negro jugó bien”, comentavam jornais espanhóis. “ Ayer el negro no bailó”.
    Na Última Hora, o jornal de Samuel Wainer, meu companheiro Oscar Maurício Azedo tirava férias de cronistas esportivos. Aproveitava então para impor o seu estilo inspirado em Didi. Chamava a bola de Guiomar. E escrevia coisas mais ou menos desse jaez: “Guiomar chega rasteira aos pés de Didi. Didi recolhe Guiomar, que se aninha, carinhosa, no seu peito. Didi põe Guiomar na cabeça, deixa que ela role por suas costas, volta-se a tempo de ampará-la. Deita Guiomar e a faz rolar no felpudo leito do Maracanã”.
     Ou, se o casal tinha brigado feio na véspera: “Didi dá um bico, joga Guiomar pra escanteio.” Mas quase sempre o jogo entre os dois era amistoso, eu diria romântico, conforme descrito por Azedo com todas as possíveis doçuras: “Antes de cobrar o lateral, Didi rola Guiomar nas mãos. Apalpa de leve, apalpa de mão pesada. Manuseia devagar, sente os gomos túmidos, Guiomar parece não querer outras mãos, mas acaba nas pernas tortas de Garrincha e, depois do esperado drible pela direita, e do centro, balança as redes.”
      Claro que cito de memória e até invento. Azedo, o cronista, era mais eloquente.

*Hélio Pólvora é jornalista, contista, cronista e tradutor premiado. Pertence às Academias de Letras da Bahia, de Ilhéus, de Itabuna e de Brasília.







EU ADORO FUTEBOL

*Marcos Bandeira


Há pouco tempo, li um artigo de um respeitável professor, no
qual ele afirmava odiar o futebol e considerá-lo uma sandice global, e que o referido esporte reforça o machismo ou estimula a homofobia e outras tantas barbaridades. Ora, não gostar do futebol ou de qualquer outro esporte é um direito natural, subjetivo de qualquer ser humano, entretanto, o fato de não gostar não o autoriza, por si só, a fazer afirmações inverossímeis ou a falar de um esporte cuja essência desconhece. Da mesma forma, não poderia me calar diante de tamanha injustiça lançada contra a maior paixão nacional e o maior instrumento de integração entre os povos. Seria, certamente, uma omissão imperdoável de quem é verdadeiramente amante desse esporte simplesmente mágico e extraordinário que para e apaixona uma nação, um continente, ou até mesmo o planeta. O articulista demonstrou desconhecer o objeto a ser estudado, pois construiu o seu pré-conceito apoiado em premissas falsas que não condizem com o que acontece na realidade, exteriorizando, por assim dizer, uma visão reducionista ou periférica do futebol.


Segundo o médico Dráuzio Varela, nosso corpo é uma maquina que foi preparada ou programada para o movimento. O futebol não é simplesmente o esporte de vários homens correndo atrás de uma bola. Ele é muito mais que isso, é arte pura, equivalente à grande apresentação de uma ópera, é o movimento transformado em arte, é o flerte do drible do jogador, da jogada bem trabalhada e imortalizada, do lençol, do lançamento de 100 metros, da matada no peito, da ginga do carregador de piano, da tabelinha, do arremate de “três dedos”, ou da folha seca, da defesa espetacular do goleiro, da elegância do defensor técnico no desarme ou na saída de bola, da liderança do capitão sobre os seus pares, da bola na trave, ou a precisão do arremate colocando a bola onde “a coruja dorme”. O futebol é a estratégia do técnico para chegar à vitória, o futebol é a explosão do “orgasmo” do gol, do poder de superação e da perseverança do time que está perdendo, e que busca reverter a situação que lhe é desfavorável. O futebol é a paixão do gol aos 44 minutos do segundo tempo, que muda completamente a história de um jogo que vinha se desenhando ao longo de 89 minutos. O futebol, portanto, é arte, paixão e proporciona a magia de reter em nossa memória esses momentos simplesmente inesquecíveis, e que hoje já podem ser revividos nos diversos museus do esporte, nos vídeos e na literatura esportiva, espalhados pelo mundo.



O futebol é instrumento de transformação social. Quantos jovens sem perspectiva conseguiram mudar sua vida através do esporte? Quantos jovens que viviam no mundo das drogas conseguiram afastar-se do vício e da droga através do futebol? Quem pode desmerecer o trabalho das escolinhas de futebol nas periferias das grandes cidades, lutando arduamente contra o traficante de drogas? Quantos garotos foram resgatados das drogas e do crime e hoje são cidadãos úteis à sociedade e ajudam seus familiares a sair da miséria? Desnecessário enumerar, diante de tantas histórias que nos emociona a cada dia.



O futebol é mecanismo de paz, e foi com essa perspectiva que Pelé, numa excursão que o Santos fazia pelo Congo Belga, conseguiu temporariamente paralisar uma guerra civil, jogando duas partidas de exibição. Nem a ONU consegue a integração de todos os povos do planeta num mesmo lugar como o futebol, que mobiliza todas as nações, incitando o sentimento de pátria, hoje quase esquecido em nosso país.



O futebol é democrático e anti-homofóbico (se realmente existe essa expressão), pois joguei com pobres, lavadores de carro, milionários, homossexuais, brancos, negros, amarelos, índios, médicos, juízes, garis, pescadores, trapicheiros, carregadores de cacau, trabalhadores rurais, analfabetos, doutores, professores e estrangeiros, e percebi que todos, dentro das quatro linhas, são absolutamente iguais, ou melhor, são atletas, despojados de qualquer cargo ou honraria e, muitas vezes, o lavador de carro pode ser o capitão do time pelo respeito e liderança democraticamente conquistados junto a seus pares. Jamais presenciei lances de racismo ou machismo, contrario sensu, sempre me lembro do respeito e da disciplina que eram passadas, principalmente, pelo treinador. Quem é boleiro, não precisa se apresentar, mesmo que seja estrangeiro, basta falar a linguagem universal do futebol. Um grande desportista, se não me engano, Sotero Monteiro, dizia que conhecia o jogador pelo arriar das malas. No futebol, existem muitas regras, como por exemplo, “quem pede recebe, e quem desloca tem preferência”; “o flanco é o caminho mais curto para chegar ao gol”. Essas e outras regras podem ser utilizadas em nosso cotidiano.



Evidentemente, que temos alguns fatos negativos no futebol, inclusive, com a incidência de brigas e mortes nos estádios, mas isso é exceção e não poderemos jamais julgar um esporte pela exceção. A mídia normalmente extrapola na cobertura excessiva do futebol, mas isso só confirma a importância do futebol para as pessoas, pois ele é entretenimento, é sonho, é alegria, e também lucro assegurado para as empresas televisivas.



O futebol gera emprego e renda em todo o mundo. Movimenta uma cidade, principalmente nos finais de semana, abrindo espaço para que pessoas simples e pobres possam vender seu amendoim e rolete de cana nos estádios e levar algum dinheiro para casa.



A atriz Maité Proença, em sua crônica “Era inveja”, diz que “No Brasil, três coisas são indiscutivelmente democráticas. A praia, que debaixo de um sol junta madame e funkeira trajadas no mesmo uniforme. O futebol, que une o ladrão e o padre numa imensa fraternidade. E o trânsito, que bota o Zé do Chevete e João do Jaguar lado a lado, paralisados pela mesma encrenca. Das três brasilidades, o futebol é a que mais me intriga”, finalizou.



O futebol molda o caráter e o espírito de liderança, ensina a trabalhar o seu equilíbrio emocional, ensina a sonhar, a perseverar, fortalece o espírito de união e solidariedade, estimula a disciplina e reverencia o respeito, mas, ao mesmo tempo, estimula o atleta a superar os seus próprios limites, ensinando a ganhar e, sobretudo, o que é o mais difícil, a perder, sobretudo com dignidade, demonstrando que a vida também é assim, ou seja, a vida é feita de desafios, de perdas e ganhos. Parodiando o inesquecível Raul Seixas, o futebol, imitando a vida, é feito de batalhas... É preciso caminhar, não desistir nunca, aprender humildemente com a derrota, e tentar outra vez.



Desta forma, em homenagem a uma das grandes invenções humanas que ainda existe no planeta Terra, gostaria de reafirmar que eu adoro futebol, e respeito quem não gosta, muito embora não seja obrigado a concordar com as opiniões sobre ele, principalmente quando ela vem com a marca do preconceito, daqueles que só conseguem enxergar alguns efeitos externos negativos, que absolutamente não afetam a essência transformadora da maior paixão nacional e o maior instrumento de integração entre os povos, que é o futebol. Como o mundo seria mais pobre e sem graça sem o futebol! Como imaginar esse mundo sem lembrar o talento de Pelé, Garrincha, Tostão, Rivelino, Maradona, Zico, Platini, Franz Beckenbauer, Romário e tantos outros monstros sagrados do esporte que deixaram registradas as marcas de sua arte futebolística em nossas memórias? Como depreciar a emoção brotando dos olhos do torcedor apaixonado? Para finalizar, parafraseando Voltaire, quero dizer para o respeitável articulista que não gosta de futebol, que “defenderei até a morte o direito de dizer, embora não concorde com nada do que dissestes”.



*MARCOS BANDEIRA – Juiz da Vara da Infância e Juventude de Itabuna, membro da Academia de Letras de Itabuna, professor de Direito da Criança e Adolescente da UESC e ex-atleta de futebol.




EL PIBE MALDITO

Florisvaldo Mattos
Houve muitos Rimbaud no mundo (e haverá),
desde aquele fatídico dia em que o próprio
embrulhou-se com os fados por causa de Verlaine.
Charlie Parker, inflado de heroína em Camarillo,
sax em febre, já foi o Rimbaud do Jazz.
O cinema teve seu Rimbaud em Pasolini,
abrupta câmera a cerzir sem titubeios,
arrastado para o cerco da noite em Óstia.

Tu serás para sempre o Rimbaud do esporte;
de todos, do futebol nem se fala, enredado
na tristeza que sacode de julho
chão portenho.
Em teus pés a bola, planeta submisso,
rola com júbilo entre galáxias de cristal.
Merecias um conto de Borges, um poema de
Lugones, tanto tens no íntimo de espelho
e labirinto;
na face, muito de sonho, nunca de deserto,

Desertos são os que agora estão te olhando,
jamais os que te olharam e aplaudiram,
enquanto o planeta rolava, intumescido.
Agora és músculo e silêncio no vidro opaco
do sonho interrompido, estrela sob facas,
ruindo em pleno sol da manhã que tarda.
Pesadelo dentro do verde quadrilátero,
jamais aceitas linhas fora das quatro linhas.

Preso a um tris lance de dados, roleta russa,
de esquerda rolas o tambor do mundo
sem esquerda,
além dos noventa minutos (nunca mais
haverá dois tempos de quarenta e cinco
minutos no jogo fechado de teus dias)
de tua impaciência, tua estudada altivez,
que muitos chamam de arrogância,
mistério criollo de sangue ressentido.

Som de bandoneon travesso, tango nostálgico
deslizando na calçada de San Telmo,
e tudo mais que ferve eterno Buenos Aires.
Despedaçado mas íntegro como um boêmio
de província, testa enrugada, deus derreado,
de mistura com terra e vinho, caminhas
por Corrientes, Florida e La Recoleta,
filho do risco, neto do desamparo,
pronto para vôo à borda do penhasco
que iluminas. Contra ti nada podem
o tempo regulamentar e as regras centenárias.


(Copa do Mundo, after Argentina, julho de 94)

* Florisvaldo Mattos é poeta, jornalista e ensaísta.

 







A EQUIPE


*Rubem Braga




Uma velha, amarelada fotografia de nosso time. No primeiro plano vê-se a linha intrépida, ajoelhada sobre o joelho esquerdo, prestes a erguer-se, uma vez batida a chapa, e atacar com fúria.

A defesa está atrás, de pé pelo Brasil.

Esse de gorro era nosso melhor elemento. Lembro que nesse jogo Nico foi expulso de campo, injustamente, pelo juiz; mas não antes de marcar dois "goals".

Esse mais gordo era Roberto Vaca-Brava, nosso "center-half", homem capaz de jogar em qualquer posição. Até hoje me lembro do time, como da letra de uma velha canção: Joca, Liberato e Zico; Tião, Roberto e Sossego; Baiano, eu, Coriolano, Antonico e Fuad. Era um onze imortal, como aliás se nota nessa fotografia, nessa chuvosa tarde, antigamente heróica eternamente, em que empatamos, porém todos reconheceram que foi nossa a vitória moral.

E olhando o retrato, olho especialmente o meu: um rapazinho feio, de ar doce e violento, sobre quem disse o jornal: "O valoroso meia-direita" - e com toda a razão, modéstia à parte.

Esse alto, nosso quipa Joca Desidério, quando a linha fechava ele gritava para os beques - sai tudo, sai da frente - e avançava na linha. E chorava de raiva quando uma bola entrava. Mais tarde, por causa de um italiano, ele se fez assassino, mas com toda a razão, segundo me contaram. Alviverde camisa do Esperança do Sul Futebol Clube, conhecido como os canetas verdes - somos nós!

Nós todos envergando essas cores sagradas; e no coração, dentro do peito, cada um tinha uma namorada na bancada. Cada um, menos um: era Fuad, que não interessava a ninguém, e morreu tuberculoso, sacrificado de tanto "correr na extrema, pelas cores do"clube - glória eterna! Era esse aqui, de nariz grande, esse turquinho feio.


*Rubem Braga - Este ano o Brasil também comemora nas academias de letras e outras instituições literárias, o centenário de nascimento de Rubem Braga. O sabiá da crônica, como foi chamado por Stanislaw Ponte Preta, era capixaba de Cachoeiro do Itapemirim, nascido em 12 de janeiro de 1913. Dono de um estilo pessoal nobre e insuperável, que só encontra concorrência nas crônicas de Machado de Assis, Braga escrevia “para ser publicado no dia seguinte”. Seus textos se perpetuaram pela objetividade, simplicidade de estilo, humor e caráter poético. Também fazia versos, embora seu único livro de poemas tenha sido publicado após a sua morte. Ele morreu na noite de 19 de dezembro de 1990.
















É célebre o texto de Vinicius de Morais: "Canto de amor e de angústia à seleção de ouro do Brasil", em que extravasa todo um grande sentimento (razões afetivas) de torcedor pela Copa do Mundo de 1962, não usando um único sinal de pontuação. Não haveria capacidade pulmonar para ler o texto de Vinicius de duas folhas e meia, sem um só sinal de pontuação, exceto o ponto de exclamação com que o finaliza.




CANTO DE AMOR E DE ANGÚSTIA À SELEÇÃO DE OURO DO BRASIL


*Vinícius de Moraes



Minha  seleçãozinha de ouro da Copa do Mundo de 1962 eu vos suplico que não jogueis mais futebol internacional não porque o meu pobre coração não agüenta tanto sofrimento eu juro que prefiro ver vocês disputando só aqui dentro do gramado nacional porque aqui a gente já sabe como é e embora eu torça pelo Botafogo ninguém vai morrer mas não é mesmo a não ser talvez o meu bom Ciro Monteiro quando o Flamengo entra bem porque nós somos todos irmãos e briga entre irmãos se resolve em casa mas lá fora tudo é diferente eu quase tive um enfarte eu quase tive uma embolia tinha uma coisa que bolia dentro do meu cérebro eu acho que era o Puskas chutando minha massa cinzenta de tanta raiva filho de uma boa senhora vocês deviam é ter-lhe dado um pontapé no cóccix vá ser oriundi ele sabe onde mas você Amarildo garoto lindo do meu Botafogo você representou o Rei à altura coitado do meu Pelé com aquela distensão na virilha se estorcendo em dores para maior glória do futebol brasileiro ele é que devia ser Primeiro-Ministro do nosso Brasil trigueiro sabe Pelé eu nunca chamei ninguém de gênio porque acho besteira mas você eu chamo mesmo no duro você e o meu Garrincha que eu louvo a santa natureza lhe ter dado aquelas pernas tortas com que ele botou a Espanha entre parêntesis garoto bom passou o primeiro passou o segundo o terceiro o quarto chutou GOOOOOOOOOOLLLL DOOO BRAAAASIL  que beleza não tem nem pode ter toda raça vibrando com uma dispnéia coletiva ah que vasoconstrição mais linda o sangue entrando verde pelo ventrículo direito e saindo amarelo pelo ventrículo esquerdo e se fundindo no corpo amoroso de pobres e ricos doentes de paixão pela pátria e até a revolução social em marcha para maravilhada para ver “Seu” Mané balançar o barbante e aí ela prossegue seu caminho inflexível contente da vida de estar marchando nessa terra em que são todos irmãos até mesmo os que amanhã podem estar regando com o seu generoso sangue este solo nativo onde seremos enterrados enrolados moralmente na bandeira brasileira ao som de “Cidade Maravilhosa” mas como eu ia dizendo não me façam mais aquilo do primeiro tempo com a Espanha porque senão vai ter um poeta a menos no mundo eu sei que poeta não resolve não dribla não encaçapa a não ser Paulinho Mendes Campos a gente fica só mesmo é driblando a angústia o medo o  amor a morte poxa eu estou agora meio doente acordo em sobressaltos eu acho que nem vou poder ouvir o jogo final senão eu faço feito aquele cara que estourou a cabeça contra um poste no fim do primeiro tempo com a  Espanha porque é demais tanta ansiedade eu já não sou criança as coronárias não agüentam brasileiro é mesmo sentimental a gente chora porque a vida dói muito em nós conforme disse o Carlinhos Oliveira aqui não tem Marienbad não é tudo gleba feita do barro natal e lágrimas de amor até  grã-fino sofre e é capaz de não ir ao “Jirau” para ver Didi mestre sereno da arte do balipédio Einstein da folha-seca ou então os Professores Nilton e Djalma Santos que precisam ser canonizados porque nunca pensam em si mesmos só em Gilmar pobrezinho mais sozinho do que Cristo no Horto no meio daquele retângulo abstrato no vórtice do qual se esconde o hímen da pátria-menina que todos nós havemos de defender até a última gota do nosso sangue dá-lhe San Thiago porque olhe que eu sou até um cara que não é dessas coisas mas juro que estou ficando com uma xenofobia de lascar e só de me lembrar do Puskas vou até tomar um tranqüilizador  senão eu dou uma bomba aqui nesta máquina de escrever que vai ser fogo e aí morro porque eu não agüento mais tanta agonia por favor ganhem logo e voltem para casa com a Taça erguida bem alto para a transubstanciação do nosso e do vosso júbilo o Rio de Janeiro a vossos pés e muito papel picado caindo das sacadas da Avenida Rio Branco e da cabeça dos políticos e só o que eu lhes peço voltem porque senão a revolução em marcha não caminha ela fica também encantada com a vossa divina mestria e por favor poupem o coração deste e de setenta milhões de poetas cuja vida pulsa em vossos artelhos enquanto vos dirigis para a vitória final inelutável com a ajuda de Nossa Senhora da Guia nosso pai Xangô e “Seu” Mané Garrincha Olé!


  

*Vinicius de Moraes, um dos grandes homenageados pelas Letras em todo o Brasil,  neste ano de seu centenário,  nasceu no bairro da Gávea, no Rio de Janeiro, em 1913. Poeta, cronista, crítico de cinema e compositor de música popular brasileira. Um dos iniciadores  do movimento de renovação da música popular brasileira, juntamente com Antonio Carlos Jobim e João Gilberto. Formado em Direito, diplomata de carreira. Sua peça musical Orfeu da Conceição, montada em 1956,  foi levada ao cinema por Marcel Camus. Conquistou a Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1959. Publicou, entre outros livros, “Cinco Elegias”, 1943, “Antologia Poética”, 1954, e “Para Viver um Grande Amor”, prosa e poesia, 1862, volume do qual o texto para esta antologia foi selecionado.  Faleceu no Rio de Janeiro, em 1980. 




O ANJO DE PERNAS TORTAS
Vinícius de Moraes


A um passe de Didi , Garrincha avança
Colado o couro aos pés, o olhar atento
Dribla um, dribla dois, depois descansa
Como a medir o lance do momento.

Vem-lhe o pressentimento; ele se lança
Mais rápido que o próprio pensamento
Dribla mais um, mais dois; a bola trança
Feliz, entre seus pés - um pé-de-vento!

Num só transporte a multidão contrita
Em ato de morte, se levanta e grita
Seu uníssono canto de esperança.

Garrincha, o anjo, escuta e atende: - Goooool!
É pura imagem: um G que chuta um O
Dentro da meta , um L . É pura dança!









A PRIMEIRA CRÔNICA DE NELSON RODRIGUES SOBRE PELÉ


ACHEI UMA CRÔNICA DE NELSON RODRIGUES SOBRE PELÉ, DATADA DE 25 DE MARÇO DE 1958, NUM SANTOS 5 X 3 AMÉRICA, NO MARACANÃ. O JOGO ERA VÁLIDO PELO TORNEIO RIO-SÃO PAULO. TUDO INDICA QUE É A PRIMEIRA CRÔNICA DE NELSON SOBRE PELÉ. UMA RARIDADE, PORTANTO.

Fonte: http://blogs.estadao.com.br/robson-morelli/a-primeira-cronica-de-nelson-rodrigues-sobre-pele/


ACOMPANHE:
Depois do jogo América x Santos, seria uma crime não fazer de Pelé o meu personagem da semana. Grande figura, que o meu confrade Albert Laurence chama de “o Domingos da Guia do ataque”. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: — dezessete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezessete anos, jamais. Pois bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racionalmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: — Ponham-no em qualquer rancho e sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.
O que nós chamamos de realeza é, acima de todo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já lhe perguntaram: — “Quem é o maior meia do mundo?”. Ele respondeu, com a ênfase das certeza eternas: — “Eu”. Insistiram: — “Qual é o maior ponta do mundo?”. E Pelé: — “Eu”. Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção, que ninguém reage e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé.
Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos. Enfiou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompéia. Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar. Ao meu lado, um americano doente estrebuchava: — “Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!”. De certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele recebe o couro no meio do campo. Outro qualquer teria despachado. Pelé, não. Olha para frente e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe ao encalço, ferozmente, o terceiro, que Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra: — sem passar a ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém para driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: — a defesa estava indefesa. E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompéia e encaçapou de maneira genial e inapelável.
Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, certeza, de otimismo, que faz de Pelé o craque imbatível. Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível em qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e mesmo insolente que precisamos. Sim, amigos: — aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas de pau.






Próxima Edição Especial: Aniversário de Itabuna