O LIVRO DE HELENA: EPIFANIAS, FALAS E FALARES - Aleilton Fonseca








O livro de Helena – Epifanias, falas e falares

Aleilton Fonseca*


Prefácio ao livro Falas e Falares. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres, 2011. 160 p.

          Este é um livro de epifanias, falas e falares. É um livro de Helena.
Nos seus minicontos tão leves e tão instigantes, a escritora Helena Parente Cunha revela mais uma de suas múltiplas faces criativas. Sua obra nos oferece poesia, ensaio e ficção, em páginas admiráveis de inventividade, senso crítico, análise de situações complexas. Em geral, suas personagens deparam-se com dilemas, traumas e tensões, mas estão sempre em busca de saídas, tentando alcançar a superação através do auto-conhecimento. As vozes narrativas assumem discursos de perquirição, a fim de atingir o estado de compreensão dos fatos vividos, para daí engendrarem um modus vivendi capaz de proporcionar equilíbrio existencial, através da conscientização de sua própria condição no mundo. De fato, os seus enredos são fortes, consistentes e reveladores. O seu leitor depara-se com vozes decididas a investigar e instigar o mundo, em busca de um conhecimento mais profundo do ser.
       Helena Parente Cunha é surpreendente a cada livro. Ela surpreende porque inventa formas, cria modos narrativos, articula sintaxes dinâmicas, estabelece nexos inusitados, levando a narrativa contemporânea a se movimentar para além de estruturas já estabelecidas. Neste livro, a surpresa vem na forma de uma prosa espraiada, distensa, como um agradável bate-papo com o leitor, de forma leve, ágil, certeira, prendendo a atenção e fazendo refletir, mas sem nenhuma dor. Pode-se, então, refletir sobre o mundo e a vida com prazer. A narradora, em passagens agudas, propõe refletir sobre as formas de acolhimento do outro. Seus diálogos demonstram a elegância da aceitação da condição do outro, envoltos em seu cotidano, em sua aparente simplicidade. A narradora os surpreende e os apanha em pleno ato de existir, simplesmente existir, satisfeitos com o ato extremo de existir.
         Os textos são curtos, bem cerzidos e arrematados em poucas linhas. Em cada um deles, em apenas um ou alguns parágrafos, tudo se resolve. De maneira simples, mas com uma convulsão de sentidos a todo vapor, à flor da pele, num apelo à sensibilidade do leitor meio distraído ou mais arisco. Reverbera em cada texto, o tom contínuo e sutil da reflexão sobre a condição humana, vislumbrada através de detalhes do viver cotidiano. São sinais que costumam passar despercebidos. Uma vez colhidos pela criação da autora, constituem situações inusitadas e ricas de significados.
         Essa prosa demonstra uma densidade lírica inescapável, e permite ao leitor garimpar frases que se alongam sonoras, vibrantes, cutucando a sua imaginação, com sua instigante simplicidade. Assim, a voz narrativa nos ensina, com sabedoria, que “as árvores, quanto mais velhas são, mais jovens serão”. Eis aí uma dialética de tempo que trinca o senso comum e nos faz pensar a existência da árvore sob um plano filosófico que se estende à reflexão em torno da própria vida humana.
       O que são esses textos? São relatos, passagens, flashes, imagens, percepções, poemas, crônicas, mini-contos… São tudo isso e muito mais: são evanescências verbais. São epifanias do cotidiano, que surpreendem ao suplantarem a lógica comum do entendimento usual, desnudando os sentidos escondidos nas dobras da moldura da vida comum. Pela saborosa ironia do cotidiano, percebemos, graças à perspicácia da narradora, quem é a “fofurinha daquele papai incontrolavelmente antigo”. E descobrimos, pelo olhar da narradora que: “deitadinha nos lençóis bordadinhos, pelos cor de mel colhido por jovens abelhas, a cachorrinha do papai sorria, vestidinha de repentino branco”.
       As tiradas poéticas percorrem os relatos, dando-lhes uma densidade lírica que se mantém em alta todo o percurso do livro. Ao falar do “Ano novo”, a narradora nos brinda com uma imagem evocativa que nos faz viajar na memória em busca de uma experiência semelhante. Então, aí somos agraciados por uma percepção singular diante da vida acontecendo. Eis o que revela a narradora, de forma lapidar: “A lua flutuava na iluminação transparente daquele azul. E nós flutuávamos acima do chão coberto de neve.” Os leitores flutuamos juntos, através da página coberta de palavras que desvendam enigmas, mas sem causar barulhos. Assim, mais adiante, aprendemos que: “os canteiros do jardim se dançavam em pétalas e gotas de sol quando ela vinha com suas águas e cuidados”.
        A vida é a matéria-prima desses registros de experiências dos viveres, em seus momentos de extrema revelação de sentidos imperceptíveis a olho nu, e envolto em mistérios. O tempo, em sua continuidade indelével, mas tem suas fases delimitadas, que podem ser percebidas em “três tempos simultâneos”, encarnados, por exemplo, em três mulheres, cada qual vivendo seu ofício de plantar e colher amor, cada qual de seu jeito. E a voz narradora confirma isso, ao surpreender as personagens no tempo tríduo de suas vidas paradigmáticas: “Entre desfiladeiros e promontórios e oscilar de cortinas e transparências, a avó, a filha e a neta, no embalo da tarde e no ritmo de seus namorados.”
       No ritmo do andar descalço pela areia da praia, essa prosa junta e ordena achados de extrema delicadeza e fina sensibilidade. Assim, as pessoas/personagens, assim as frases/versos que as nomeiam e as descrevem. Tudo aqui é linguagem instaurada que dá vida e valor ao que nomeia e reconhece. Assim, as simplicidades, nas quais a vida se mostra pulsante e vivaz. Assim, “Jeremias na praia de Guarajuba”, simplicidade que salta aos olhos e às palavras. Adiante, a narradora percebe-se como parte do sonho de vida plena, no texto que narra. Ela é voz que se narra a si mesma, entidade ficcional que se instaura naquilo que narra, ao afirmar de si: “Caminho pelo chão de água e algas e conchas e escamas. Beira móvel de ondas sobre e sob meu passo derramado de brilho solar. Barulho fresco de espumas e areia em tão cedo esta manhã de domingo”.
        No mesmo ritmo, no mesmo acorde, há olhos para perceber “O velho da areia”. E a narradora indaga: “Vocês sabem onde estou agora? As areias da praia de Guarajuba identificam meus pés começados no riso das espumas e resolvidos na caminhada molhada até a última curva junto ao coqueiro de seu Samuca”.    
       Quanta generosidade nos chamar para dentro desse universo! A autora nos oferta um lugar-poema que se torna real em palavras e passa a existir em nosso mundo construído através do texto lido e acolhido ao terreno da imaginação. De fato, como uma personagem de fábula, queremos também imergir na percepção da vida natural, à beira-mar, habitantes das areias… E queremos também acender a nossa vela pra Xangô e, sobretudo, queremos dar muita risada com seu Samuca.
      No ritmo calmo das ondas do mar, essa prosa é areal de descanso e pensamento. A vida que a gente imagina segue no ritmo das ondas da praia de Guarajuba. É uma continuidade que não tem ponto final, mas apenas pausas de vírgula entre um acontecer e outro… conforme lemos nos textos de Helena, senhora e vivente dos areais de Guarajuba.
        Nestes textos curtos há diálogos. E o diálogo é franco, leve, bonançoso; é cura para leitores carentes de boa prosa e maresia, à beira-mar. Por isso, não há marca de silêncio em volta dessa escrita.  Aqui e acolá, a narradora dialoga, troca frases, permuta sentidos, cruza percepções e sutilezas que dissolvem as diferenças. Ela dialoga com personagens simples; um barraqueiro, um carregador, uma vendedora de cocadas; os motoristas de táxi, todos viventes, protagonistas e portadores de histórias, donos de suas trajetórias peculiares, posseiros de significados particulares da vida humana.
      Estes textos são relatos de memórias – vividas e inventadas. São invocações de palavras e imagens que se aliam para traduzir a semântica das marcas de um tempo vivido e assistido, que enfeixam sentidos e afetos num mesmo tecido de inventários de efemeridades e percepções cotidianas. Enfim, são fotografias afetivas em que: Fluxos e melodias nos integravam quando ele ria e em nós se ouvia e se sorria e em nós de que de qual de onde que de alegria”.
        E, de repente, aparece uma referência à Beatriz de Dante, como figura de alto valor afetivo e lírico. Mas a Beatriz dessa prosa é outra; inscreve-se no mundo da palavra, pois que é nascida e nomeada no aventurado ano de 2008. Conforme afirma a narradora, essa Beatriz, outra e mesma, é nascida “há exatamente doze meses e saibam todos e todas que me leem, a Beatriz de quem falo também possui o dom de tudo transformar ao seu redor”. Helena também.
       A autora deste livro colhe gestos e palavras ao vento e à vida, para transformar tudo ao seu redor, dando novos sentidos ao que havia antes. O ponto final seria a instauração do nada? O texto então pode terminar só com vírgula, – nunca terminando – porque o passar da vida é ato contínuo, entre pequenas pausas. O ponto final é marca de silêncio in totum que, enfim, sequer pode existir. O que é dito está sendo dito, sem termo, ecoando na eternidade. O existir do universo é, em si mesmo, um som, uma sonoridade, no íntimo da qual repousam, inquietas, todas as vozes e as palavras ditas e dizíveis.  O mundo é verbo.
      Esta autora Helena surpreende, muitas vezes, na justa medida da necessidade que tem o leitor de ser surpreendido e desafiado, sem, no entanto, se sentir desconfortável na luta da leitura.  Ah, lutar com palavras… refletia um certo poeta. Como a vida em si mesma, a escrita de Helena surpreende pela capacidade de ultrapassar a lógica prática dos seres, gestos e fazeres. Assim, é, talvez, para surpreender a si mesma, que, personagem inscrita no olhar agudo da narradora, “a mulher refaz a água das plantas e o alpiste dos pardais e se debruça mais em direção às criaturas de pé no ponto do ônibus e minhas retinas se acomodam nas suas e ela se debruça mais, muito mais, para segurar o pardal ferido, caído na cerâmica do piso da varanda”. O que canta aos ouvidos é a melodia, é ramalhete de imagens, arranjos de flores, de uma fantasia cigana. E a voz narrativa se revela: “eu sou”.“Eu sou no que fui cigana dançarina a bailar na tua pele e no teu sopro e no teu fragmento.Tu és no que foste cigano entre os fios sonoros do violino a tecer no meu passo a tela e a trama por onde estamos desenhados ou vamos afoitos rompendo as linhas e os fios e os fusos horários Do centro da fogueira enxames de salamandras saltam das chamas e se soltam em setas e a fogueira se acrescenta nas labaredas e na oscilação da luz
Almofadas entre lépidas franjas e rumorosas contas e dorsos tensos mas lassos, no silêncio sussurrante e nas impregnações que se dissolvem e caem das malhas invisíveis
((Eu fecho o caderno de capa azul e cerro os olhos e encerro o olhar ausente da coreografia dos cílios))”
          Nesta prosa há lugar para a revelação da poesia. E os versos ocupam a pauta no poema que se intitula “A avó e a porta aberta”. A pergunta inicial reverbera em todo o texto, em busca de uma resposta que está para além do discurso, imantada na memória e na indagação dos viveres:“Por que ela não quer passar a chave na porta?Por que você deixa sempre a porta encostada?”
       As perguntas também são formas e estratégias de resposta. As respostas diretas podem escamotear os sabores dos significados, falseando sentimentos e intenções. Nas entrelinhas esconsas, entre perguntas e respostas, os mistérios convivem e os detalhes se entremostram. A palavra nomeia, revela e instaura. O silêncio é um discurso – ambivalente e perigoso. Diálogo, o antídoto.
       Esta prosa nos aclimata em seu ritmo, e escorre mansa, em palavras correntes, página afora, seguindo a sinuosidade dos sentidos, num lirismo solto, espraiado, elegante, bem articulado. Águas de mar banhando as pedras. Águas de rio desenhando as margens. Uma protagonista nos avisa, sobre si mesma, que é: “calmíssima, sim, sou assim, nada me tira do prumo,” e, de fora, a narradora continua: “, revisora de textos para editoras, não deixa passar uma virgula, um acento, uma preposição na regência verbal,” e, adiante, prossegue: “, e assim é, a fala plana, o gesto contemplativo, o olhar liso sem ruga,” e completa: “os cabelos em brandos fios, as roupas sem modulações de cores nem de linhas, sapatos em risco reto,”.  O discurso flui assim, demarcado entre vírgulas, como a vida, sem pontos fechados, feixes de continuidades…
       Surpresas. Assim, em mais uma história de motorista de táxi: “O vento vinha na cabeleira grisalha do motorista, os dedos esguios regulavam a altura do CD, a senhora gosta de Vivaldi? Antes de descer do táxi, contive minha curiosidade. Seria falta de delicadeza perguntar a reação dos jasmins e seu perfume noturno, ante a programação musical para as orquídeas?”
       Uma coisa é certa: é preciso trocar ideias com os jasmins; indagar sobre seu perfume noturno. Perguntar sobre suas intenções musicais para com as orquídeas. Asseguro que isto não seria indelicadeza, mas vivo interesse amoroso. O que jaz em mim? De onde vem tal indagação, de que riacho, de que jardim? Onde começa a eternidade?  Pode-se responder a essa pergunta a partir da biografia de um cajueiro? Helena é capaz de responder. Porque há em Guarajuba, locus afetivo e imaginoso da escrita deste livro, um senhor Cajueiro inscrito no chão, no ar, no tempo, no texto, no coração.
       Com a palavra a narradora:“Eu me sentava e ficava, eu e ele, o cajueiro irmão, em contemplação, integrados no silêncio vegetal que nos impregnava e nos levava à pureza das origens. Ninguém passava por nós, as formigas, longe do cerco, nos olhavam cúmplices e seguiam sem ruído. Vento havia e passava cabisbaixo em meio à profusão de ramos e folhas e cipós e parasitas e cabelos nossos, sem murmúrio nem gemido. A eternidade começava ali e acabava no muro que dava para a rua.”
        E, para concluir, o fragmento final desse discurso amoroso:
“A eternidade começa ali e ultrapassa o muro que dá para a rua e nos desmancha, corpo e tronco, na metamorfose das origens em predestinação além das palavras e das anteriores perguntas”.
     Mas o que é este livro, afinal? É uma espécie de diário aleatório de reminiscências ficcionais que evoca os dons acumulados e as experiências do viver.  Ele instaura-se enquanto relicário de conhecimento e compreensão, ao se imantar em histórias – fragmentos dos viveres – as aspirações e os planos, esboços recolhidos no inventário das possibilidades, nas dobras dos paradigmas, nas páginas não escritas do livro dos saberes. O que não se vive no mundo real, pode-se viver ainda melhor na ficção. E a ficção pode ser mais realista e próxima do ser, do que aquilo que seja o ser mais próximo do real. Escrever é mesmo um mistério. Escrever é verbo, escrever é Helena.
     Caro leitor, eu já li o livro que se inicia aqui. Eu cheguei à copa dessa árvore antes de você, perdoe-me. A autora me permitiu compartilhar a sombra e a alma desse Cajueiro. Ela e eu inscritos em qual Tempo Cajueiro. Nas folhas desse livro-árvore há seiva, flores e frutos. Há nele um código de perpetuação. Arvore-se, caro leitor. E lembre-se da lição helenar: “as árvores, quanto mais velhas são, mais jovens serão”.

 
Aleilton Fonseca* é escritor,  professor da UEFS,   membro da ALB e ALITA