Gotas
de sangue
©Gideon Rosa
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Está vendo? Não tem sangue, cadê? Eu devia ter imaginado!
A
voz tonitruante rebateu pelos seus ouvidos e um fogo percorreu seu
corpo da cabeça aos pés. Mas ela não disse coisa alguma. Encolheu-se na cama e
chorou silenciosa. Realmente não havia sangue nos lençóis, mas não sabia
explicar o motivo, era pura, nunca tinha sido tocada por um homem. Ele
levantou-se, saiu pisando firme, lavou-se e foi para o curral cuidar das vacas.
Enquanto ouvia o berro dos bichos, tremia e chorava imaginando o que ele
poderia fazer. Levantou-se tímida e ficou olhando pelas gretas da casa de
taipa. Ele parecia muito concentrado em tirar o leite. Olhou, olhou, olhou e,
finalmente, decidiu acender o fogo a fim de fazer um café, começou a ralar um
milho para cuscuz, e faria um café mais forte do que de costume. Queria que o
cheiro inundasse o ambiente. Novamente verificou o mundo lá fora, só que dessa
vez, através das gretas da janela. Percebeu que ele estava voltando para a
casa. Então, quase silenciosamente, ousou abrir a janela. Quando o assoalho
rangeu sob o peso de seu corpo, ela estremeceu. Atônita, apanhou uma vassoura e
fingiu varrer o chão. Tremia. Ele colocou o leite sobre a banquinha de apoio do
fogão, coou e ele mesmo colocou no fogo. Depois bebeu um longo gole de café e
disse que o cuscuz estava cheiroso, era um sinal de que já estava bom.
À
mesa comeram em silêncio. Ela tremia com medo de que ele tocasse no assunto e a
colocasse porta afora. Que faria? Recolheu os pratos e sentiu-se aliviada
quando o viu arrumar-se para ir cuidar das roças de cacau. Facão na cintura,
foice na mão e uma camisa branca enodoada, quase encardida. Ele desceu a
ladeirinha em direção a represa e depois sumiu-se por entre o cacaual. Seu
corpo já não tremia tanto. Arrumou toda a casa. Tudo brilhava. Camas, a pouca
prataria. Afastou todos os móveis, retirou tudo do lugar e destruiu as teias de
aranha. No ar, o odor de um almoço que incluía um feijão com carne dentro, arroz
e lombo, sua especialidade. O lombo inundava tudo com seu odor forte de tempero
bem curado. A mesa bem posta. Quando ele retornou, ela sentiu o esboço de um
sorriso no canto da boca dele. Enquanto ele fazia a sesta na rede, ela resolveu
varrer o terreiro. Só aí se deu conta de onde realmente estava. Era uma casa
perdida no pé da colina. Um quintal com uma cerca gigante afastando,
principalmente as galinhas. E como havia galinhas! Em seus vinte anos de vida,
só conhecera a pobreza e todas aquelas galinhas e bichos, tudo se parecia
muito com sua idéia de riqueza. Na verdade não era, sua pobreza é que era
tão grande que não dava pra medir. Sentia-se aliviada e seus olhos encheram-se
de lágrimas quando avistou o galinheiro com mais de duas dúzias de ovos. E num
único dia! Talvez não fosse riqueza, mas seria um bom começo.
Entrou
no quintal e começou a limpar tudo. As leiras estavam feias, sem legumes e
verduras. Primeiro limpou toda a erva daninha. Amanhã, com certeza,
reconstruiria as leiras e plantaria de um tudo naquele pedacinho de chão.
Chorou novamente ao imaginar tomates, couves, coentro, salsa, cebolinha,
pimentão, cenoura, repolho e pimenta. Adorava pimenta. Na verdade nem sabia se
gostava mesmo. Talvez estivesse acostumada. Era a pimenta que ajudava a engolir
a farinha seca que tinha sido seu prato principal nesses anos todos.
Acostumou-se com o ardor. Era quase uma especialista em molho de pimenta. Bem
forte, tão forte que as pessoas começavam a tossir apenas ao sentir o cheiro.
Ao voltar para casa, percebeu que já era bem tarde. Ele já não estava mais na
rede há muito tempo. Preparou o jantar. Ainda comeram em silêncio. Ela estava
satisfeita porque havia atravessado o segundo dia.
Atrás
da casa avistava-se uma mata virgem, que era como uma reserva. Quando se ia
para o oitão, podia-se ver lá no alto a casa de dona dos Anjos. Lá estavam
todas as primas, mas ninguém tinha vindo visitá-la ainda. Também não era
preciso, estava bem, apesar de tudo. Enquanto remendava as roupas de trabalho,
pensava no primeiro dia, logo após o casamento, quando entrou em casa com ele.
O coração pulsava e seu corpo magro estava frio. Era sua primeira noite com um
homem. Ainda era cedo quando entrou na casa com ele. Ela imaginava que ele
fecharia todas as portas e que os dois ficariam em cima da cama brincando até
tarde. Mas nada disso aconteceu. Ao entrar, ele abriu as janelas, mostrou o
quarto e saiu em direção à roça. Uma lágrima escorreu apenas por um olho.
Engoliu seco e começou a desarrumar seus “quase-nada”. Era uma malinha de couro
puída com três vestidos dentro, uma camisola, umas poucas peças íntimas e uma
blusa. Tinha também uma loção barata. Era tudo o que podia ter. Olhou para o
armário e viu um almanaque. Apanhou o almanaque e folheou curiosa. Pelo menos
sabia ler. Não tinha ido à escola mas sabia ler. Havia aprendido sozinha,
decalcando as cartas da avó em papel de embrulho. Era uma história triste. Seus
outros seis irmãos, todos homens, foram à escola. Ela não. O pai, um homem rude
de aparência suave, a proibiu de aprender a ler.
- Pra quê? Só vai aprender a escrever
carta pra namorado!
Mas
não desistiu. Pediu a Zefinha que lhe ensinasse o ABC, aprendeu as letras,
juntou as consoantes com as vogais, tomou emprestadas as cartas da avó e
conseguiu ir decalcando tudo com um lápis e papel de embrulho. Logo reconhecia
as palavras e não havia livro que não lesse. Somente a avó sabia de sua
façanha, ela escondia da mãe e dos irmãos, porque somente assim o pai não
ficaria sabendo. Quando se deu conta de sua pequena história, um lágrima caiu
sobre a página do almanaque. Recompôs-se e pôs-se a cantar enquanto tomava nota
das instruções para ter boas couves. O almanaque era muito útil. Ficou contente
que ali tivesse um. Na verdade, só tinha ouvido falar de tais almanaques, mas
nunca pudera ter um nas mãos porque não poderia revelar que sabia ler. Ali não,
era a dona da casa e poderia ler quantos almanaques quisesse. De repente,
começou a rir sozinha ao imaginar-se entrando numa farmácia num sábado de
feira, em meio a música de Papai Noel, e pedir um almanaque ao farmacêutico.
Ela teria para si seu primeiro almanaque, e leria tudo em primeira mão, todas
as piadas, as instruções de como ter melhores colheitas, as coisas de saúde da
mulher. Tudo agora estaria ao alcance de suas mãos por causa do almanaque.
Devolveu
o livreto ao seu lugar no armário e voltou a pensar no desapontamento do seu
primeiro dia. Na verdade seu primeiro dia foi quase o segundo dia, porque ele
voltou cansado, virou-se pro lado e dormiu. Somente pela manhã cedinho é que
resolveu tocá-la. Não tinha sonhado assim. Mas não havia escolha, e aquiesceu.
No início, ela ficou sem entender o que tanto ele procurava, ficou aflita,
afastou-se de um lado para o outro da cama, à medida que ele a afastava como se
fosse um molambo. E foi aí que, finalmente, ele disse o que procurava. Queria
os vestígios de sangue. Mas não havia. Foi horrível ouvir aquelas palavras,
sentir-se culpada sem ter culpa. Pensou em morrer. Mas era contra tudo o que
aprendera. Morrer somente pelas mãos do divino, apenas segundo a vontade Dele.
Não podia morrer, apenas podia querer morrer, mesmo sabendo que isso também era
pecado.
*
* *
As
sementes de coentro já despontam na leira. As couves também, assim como as
cebolinhas. A rotina sufoca, não mais do que o calor das tardes. Gostava de
cantar quando estava muito quente. Quase todos os dias alisava a barriga para
poder sentir se havia outra vida gerando lá dentro. Estava certa que depois
disto, tudo se acalmaria em definitivo. O sabão acabou, o jeito é fazer mais.
Apanhou a porção de soda cáustica, o sebo e preparou um fogo do lado de fora.
Passou a tarde inteira preparando sabão, utilizando uma fórmula que havia
aprendido com sua avó. No final da tarde, apanhou o caminho da represa. Queria
lavar todos os utensílios. Essa era outra mania. Tudo limpinho, brilhando.
Passava horas areando as panelas. Gostava de vê-las ofuscando ao sol. Os
garfos, as facas, as colheres tudo areado cuidadosamente, depois
secava-os ao sol. Não gostava desses trabalhos domésticos, mas fazia resignada.
Imaginava um dia em que inventassem talheres que não precisassem ser areadas,
que tivessem um brilho permanente.
Lavou
tudo com cuidado. Riu com as piabas que vinham loucas apanhar os restos de
comida e sabão. Restos de comida sim, mas como elas podiam gostar de comer
sabão? Bichos idiotas. Idiotas, mas saborosos. Gostava de pescá-los. Mas não
usava sequer um jereré. Jogava um punhado de farinha na água, e quando
elas se amontoavam na disputa pela comida, enfiava, ágil, o cesto na água e
trazia um monte ao ar livre. Elas pulavam até acalmarem-se. Mortas. Dali,
punha-as a secar ao sol. Depois fritava-as no toucinho e comi-as, apenas por
puro vício e prazer de comer livremente. Comer como nunca havia comido antes.
Quando se pôs no caminho de casa, avistou Maria Pereira, uma mulher antipática,
cuja filha estava destinada a casar com ele. Mas o destino tem das suas. Não se
suportavam. Maria Pereira aproximou-se da beira da represa, e disse
provocativa:
- A
égua está contente hoje!
Antes
que ela se desse conta, ou que as palavras entrassem direito pelos seus
ouvidos, viu-se apanhando o penico que fora usado para dissolver a soda
cáustica. Num segundo descia o íntimo objeto sobre a cabeça de Maria
Pereira. O sangue jorrou-lhe em esguichos. Gritos, muitos gritos e os homens
descendo afoitos da labuta para apartar a briga. O alarido acalmou-se logo.
Levaram-na para os primeiros cuidados. Soube que curaram a ferida com
pó-de-café e o sangue logo estancou. Ele não disse coisa alguma. Ajuntou as
coisas e ajudou-lhe a levar tudo para casa. Naquela noite ninguém pôde usar o
urinol. Teria que se comprar outro. No dia seguinte, sem querer jogar sua arma
fora, foi até o quintal, encheu-o com a melhor terra, aquela bem preta da
leira, e plantou uma espada-de-Ogum. Depois ficou olhando o penico, agora
transformado em vaso de planta ornamental. Ficou imaginando onde encontrara
forças para dar golpes tão fortes. O esmalte do urinol havia sumido. Somente
agora se deu a pensar em como estaria Maria Pereira.
- Égua
é você sua cachorra velha, disse pra si mesma.
Quando olhou para o lado de fora, viu nuvens aglutinando-se. Parecia uma
formação de chuva. As árvores começaram a vergar sob o sopro do vento, um
zunido invadiu as frestas das janelas e as gretas da casa. Estranho. Ela o
avistou quando ele saía do cacaual e procurava a trilha de casa. As nuvens
pareciam cada vez mais escuras e o vento gritava mais. Teve medo. Um raio
cortou o céu, e antes que ela estremecesse de medo, ouviu o estalido da madeira
rompendo-se e o telhado saiu voando no meio de um redemoinho medonho. Quis
gritar, sair, mas não conseguia ver coisa alguma, e agarrou-se firme a um
esteio da casa, que agora não possuía teto e o céu poderia desabar sob sua
cabeça. Como seria quando aquelas nuvens despencassem a chuva? Através do
telhado ela podia ver o redemoinho em direção às nuvens, as telhas, toda a
cumieira da casa tinha ido junto.
O redemoinho subindo em direção às nuvens, que também se dissipavam. Olhou em volta
da casa e tudo estava, para sua surpresa, no lugar. Apanhou uma toalhinha feita
de saco de açúcar e alvejado cuidadosamente, esfregou nos olhos, secou as
lágrimas e saiu para o terreiro. Queria ver o estrago. Tudo estava no
lugar. As vacas, as galinhas, as árvores, tudo estava lá. Então gritou por ele.
Olhou em direção a trilha do cacaual, saiu correndo para ver onde ele
estava, em minutos estava na fonte de água azul, que continuava plácida. Ele
não estava lá. Começou a chamar. Quando seus pulmões cansaram e as cordas
vocais estavam roucas, resolveu voltar para casa e se surpreendeu porque o
telhado também estava no lugar. Pensou em alucinações. Entrou em casa e chamou
por ele. Nenhuma resposta. Pensou em Maria Pereira. Quando saiu à porta,
bateu-se com sua prima Isabel, que vinha trazendo um pouco de café donzelo e
que não tinha visto nada. Mas ela tinha uma notícia. Quando retornou para casa,
Maria Pereira começou a inchar, inchou até explodir. Foi uma correria dos
diabos. Ao explodir, ela deixou o odor do excomungado no ar. Pegou o café
donzelo das mãos da prima, viu o mundo por entre as lágrimas dos seus olhos e
sentou-se à espera de que ele entrasse porta adentro. Ele nunca mais entrou.
*Gideon Rosa é escritor, jornalista, teatrólogo e membro da ALITA