Por Cyro de
Mattos
Eis que me chega
às mãos o livro de um poeta estreante.
Nessa enxurrada de poetas intragáveis que andam por aí, alvíssaras para o
baiano (de Muritiba ) Carlos
Machado com os poemas reunidos no livro
Pássaro de Vidro. Esse poeta
estreante armazenou durante anos as inquietações de seu trânsito no mundo e
assimilou também as experiências de
poetas de primeira grandeza. Amadureceu em silêncio, preferindo o
procedimento do qual se elabora a obra
poética através do exercício qualificado, escrevendo e lendo,
lendo e escrevendo, dotando seu talento de uma razão emotiva de natureza crítica,
até chegar o momento de se lançar como poeta crescido.
Esse pássaro que ele
apresenta em versos concisos não
soa nem ressoa em seu espaço de vidro. Não voa, mas serve para apreender as
horas no precipício da memória com a
intervenção do tempo sem brisas. Essa
ave pedestre com sua alma de relógio solta do bico ambigüidades de voo solitário em torno das
dimensões do homem no tempo. Engaiolada
no silêncio de si mesma, com garras
afiadas desnuda suas penas nos ácidos do
tempo para que se conheça a cadência
contraditória e falha da vida. Assim permanece em diálogo crítico com o outro
mais o mundo, eis que constata que o direito não há e não faz sentido quando
existe um prazo para tudo que nasce, desenvolve-se com ânsias e sombras para
ser represado no córrego das horas.
A motivação e a transpiração em cada poema que esse
pássaro de vidro engendra participam de
versos contendo imagens significativas no discurso que diz muito com poucas palavras. Esse pássaro de
cego olhar para flagrar as fissuras e rupturas da vida dá continuidade à metáfora da poesia como
forma de conhecimento do mundo. Ele surpreende a agonia de vozes quanto mais
essa máquina da existência descortina o
verso inverso dos sentidos. Demonstra
assim que os dentes dessa máquina, que se chama vida, não descansam em cada momento da
moagem do homem pelo tempo.
A linguagem que usa
para informar sobre a substância
dessa ânsia nas horas do mundo vem acompanhada de um ritmo sóbrio.
Estrutura-se com recursos que traduzem sentidos importantes quanto à impossibilidade de seu voo estranho,
mas que nos encanta em seu modo de
flagrar os instantes da existência. O
teor de cada poema, o ritmo e a imagística ajustam-se à harmonia de seu
trinado. Com coerência esses meios encaixam-se
nos juízos e ideologia reflexiva dos
versos. Por isso mesmo não é um poeta descritivo nem romântico moderno.
Participam do discurso apurado
questionamentos, afirmações e constatações do homem fisgado pela
engrenagem dessa máquina movida na vertigem de cada giro, no jogo
intervalar por entre os círculos da vida
e da morte.
O livro de estreia do poeta Carlos Machado divide-se em
três partes: horológio, pássaro de vidro e garrafa de náufrago. Na
primeira, o poema “Punhais” informa que
os punhos do tempo são como ponteiros de
metal cravados “na pele fria de cada hora que
vai”. Na segunda, o poema “Pássaro de Vidro (3)” constata que: “ o pássaro é cego/ e cego é quem se agita/ em
seu espaço/ ambíguo”. Na terceira, o poema “Homem-Bomba” questiona o que
pensa esse personagem “no exato momento de soltar o pino e estancar
o tempo”. Já no poema “CPF”
pergunta-se se essa pessoa física em seu estar no mundo tem alma, alguma
dor, carência ou padece.
A estreia desse baiano de Muritiba, radicado há tempos em
São Paulo, responsável pelo boletim Poesia..net, no qual divulga os poetas
expressivos de hoje e ontem,, revela um
poeta que não comete deslizes no conjunto de seus poemas agora reunidos em
livro. Não se trata de um poeta que acertou
apenas em um, dois ou três poemas, eleito como maravilhoso por inúmeros que não sabem ler o poema com olhos
críticos que veem e ouvidos afinados que
escutam. Não sabem distinguir o poeta vulgar do consistente na forma e
profundo no conteúdo. Enganam-se com o fazedor de versos bobos, confissões
piegas, ébrios lamentos que não transmitem novos sentidos da vida, descrições
fáceis nutridas da realidade objetiva. Ao contrário, nada nesse Pássaro de Vidro é gratuito, repetitivo, enfadonho. Ele se expressa com um discurso lúcido,
denso. Com imagens precisas descobre no simbolismo de seu estar no mundo a
anatomia de coisas feita de momentos essenciais, para que assim seja visto em
seu lado oculto o verdadeiro lado de seu
vulto.