I
Estava tomando o famigerado “banho de sol”, fazendo uma reflexão da minha
vida passada e da minha doença que me debilitava dia-a-dia. Já tinha perdido os
movimentos dos pés, das pernas, das mãos (a doença ainda não me tinha afetado a
voz), quando fui despertado pelo vozeirão do meu filho mais novo, que me
acompanhava na minha caminhada ao calvário, na minha via-crúcis:
- Eh velho, tristeza não paga dívida e do mundo nada se leva, ânimo! –
ele não gostava de me ver sorumbático, pra baixo.
- Estou aqui pensando na minha mocidade. Eu tinha saúde de atleta. Nunca
fumei, nunca bebi além do social e, estou aqui à mercê das pernas e dos braços
dos outros, numa cadeira de rodas. A vida nos prega cada peça!... – lamentei.
- Você não está à mercê de ninguém! Eu sou suas pernas e seus braços, pra
quê braços e pernas mais fortes? Não está satisfeito com os meus cuidados? –
perguntou-me.
- Não meu filho, não é isso. É que estou velho, mas não o bastante para
ficar em cima duma cadeira de rodas. Você deixando os seus afazeres e os seus
divertimentos para ficar pajeando-me. - Justifiquei.
II
Ano de 1983, mês de agosto, não me lembro o dia. Acredito que sábado ou
domingo. É o dia que mais se encaixa pra fazer visita a um doente, quem trabalha
nos demais dias da semana. Eu e a minha esposa tínhamos ido visitar um velho
amigo, um amigo velho, no hospital Manoel Novaes na cidade de Itabuna. Esse
hospital tinha antigamente, uma unidade específica de acompanhamento às
mulheres grávidas, trabalho de parto, um serviço de pediatria e um serviço
geriátrico.
Hoje, esse hospital está voltado para o serviço de pediatria, obstetrícia
e um banco de leite materno, referência em todo estado baiano pelo seu bom
desempenho e pelo serviço social que presta à comunidade itabunense. Além
desses serviços, tem uma unidade isolada, em seus terrenos, de atendimento
ambulatorial de quimioterapia aos doentes de câncer.
Doente visitado, dever social cumprido, fomos ver os berçários e as mães
daqueles pinguinhos de gente recém-nascidos. Num dos berçários, havia uma
criança, de cor, órfã de mãe viva e pai ignorado. Soubemos pela enfermeira que
a mãe da criança a tinha deixado lá para ser adotada. Sensibilizamo-nos com o
caso, o que lhe permitiu nos perguntar se não tínhamos interesse em adotá-la:
- Não, temos duas filhas. Se fosse um menino, nós iríamos pensar.
–respondemos-lhe.- Essa deixa foi o bastante para que assumíssemos um
compromisso não escrito de adoção:
- Vocês adotariam se fosse um menino?...
- Sim!! - eu e a mulher respondemos uníssonos.
Depois vieram as explicações: era comum, mulheres solteiras e
adolescentes pobres, abandonarem seus filhos, logo após o parto, para
encaminhamento de adoção pela justiça. Quando não surgia ninguém interessado, a
criança era encaminhada para algum abrigo, uma instituição pública.
Um mês depois, já tínhamos esquecido do compromisso de adoção, quando
essa enfermeira nos telefona, avisando que se encontrava no hospital, um
recém-nascido rejeitado pela mãe e lembrava o nosso compromisso:
- O senhor e sua esposa pediram-me para avisar-lhes quando um
recém-nascido fosse rejeitado pela mãe. É um menino lindo e saudável! –
procurou-nos animar...
Os mais velhos dizem que não é obrigado empenhar sua palavra, mas uma vez
dada, faz-se necessário assumi-la. Por isto, não tergiversamos, no mesmo
instante, pegamos uma velha “Brasília” e fomos buscar o filho que não parimos.
Esperávamos receber a criança formalmente, numa sala suntuosa, com os
diretores do hospital e o juiz da Vara Criança e Juventude, fazendo um discurso
ressaltando o nosso desprendimento, a nossa contribuição com a sociedade,
impedindo que no seu seio um novo marginal fosse gerado ao tempo que nos eram
exigidos compromissos escritos e registrados em cartório e homologado pelo meritíssimo
juiz. Mas debalde foram nossas expectativas: a criança foi-nos entregue pela
porta dos fundos, urinada e obrada, enrolada numa fralda, sem cerimônia, como
se fosse um troço, uma coisa.
Levamos-lhe pra casa e demos-lhe carinho, amor, nome e sobrenome.
III
Doença não manda recado, principalmente, as genéticas. Lá no
interiorzinho da célula, um gene mau caráter, herdado dos nossos pais, fica
encolhidinho, às vezes por vários anos, quando ele resolve se manifestar, é que
se descobre sua existência e sua nocividade. É mais ou menos assim que se
explica a atrofia muscular espinhal – AME. É uma doença insidiosa, traiçoeira,
que pouco e pouco vai se manifestando. Os movimentos voluntários dos membros
vão se restringindo e enquanto se peregrina de médico em médico, ela já tomou
conta do nosso corpo e o final é caixão e vela.
Alguns exames, a exemplo do eletromiografia, da biópsia muscular e do
exame de DNA, detectam as alterações das fibras musculares, evidencia a
histoquímica de desnervação, medem as atividades elétricas dos músculos,
localizam, retardam, ajudam no tratamento, mas não curam essa doença.
Aos 40 e poucos anos de vida, na flor da maturidade, da atividade
produtiva, sem nenhum vício, fui acometido duma atrofia espinhal progressiva de
forma adulta e quando fui ter consciência de sua gravidade já estava em cima de
uma cadeira de rodas.
A doença ainda não tinha afetado a minha fala, mas pelo histórico dela, é
esperar pra ver.
IV
Diz o povo que Deus escreve certo por linhas tortas. Não me tornei pai adotivo
por necessidade, egoísmo, gesto altruístico, filantropia ou realização pessoal.
Tinha um casamento estável e duas lindas filhas, de 1 e 5 anos de idade. Mais
um filho não fazia parte dos meus planos familiares, principalmente, adotivo.
A minha ida ao hospital naquele dia, naquele ano de 1983, para visitar um
amigo doente, encontrar uma menina rejeitada num berçário, firmar um
compromisso desnecessário com uma enfermeira quase desconhecida e menos de 30
dias depois, uma mulher qualquer, que não conheço o nome nem o sobrenome,
despeja do seu ventre um menino que por capricho do destino torna-se meu filho,
não tem explicação racional, é coisa de Deus. Estava escrito.
Dez anos depois a minha primogênita teve a vida interrompida por uma
leucemia com 16 anos de idade. O sofrimento foi grande e o baque maior. Só quem
perdeu um ente querido sabe o estrago e a dor de um luto, em especial, a perda
de um filho.
Porém, o relógio do tempo não pára, a vida continua. A dor é substituída
por uma lembrança amiga. Eu e a mulher tínhamos, agora, o dever de cuidar de um
filho adotivo de 10 anos de vida e uma filha um ano mais velha.
No ano de 2004, a segunda filha casou-se. Quem casa quer casa, hoje, ela
cuida do marido e dois enteados que herdou. Quem contrai obrigação, adquire
mando e autoridade, o pai é substituído pelo marido. Embora seja uma boa filha,
a distância e os novos compromissos, filha casada é visita.
V
Naquela manhã, quando esse filme passava na minha cabeça, em cima de uma
cadeira de rodas, é que pude comprovar quão significativa é a sabedoria
popular. Se Deus desse ao homem o seu saber, sua onisciência, o sofrimento do
homem começaria no ventre materno porque saberia a priori o seu fim. Para mim
foi bom eu não saber o meu fim, pois não aproveitaria como aproveitei sem
presságios, a minha juventude e parte da minha maturidade. O amanhã a Deus
pertence.
Pude comprovar que ninguém procura o outro por acaso. E se Saulo me
procurou naquele hospital para ser seu pai é que ele tinha por desígnio ser as
minhas mãos e as minhas pernas nessa difícil caminhada. Seu vozeirão ainda ecoa
dentro de mim:
“Eh velho, tristeza não paga dívida e do mundo nada se leva, ânimo!”
“Você não está a mercê de ninguém! Eu sou suas pernas e seus braços, pra
quê braços e pernas mais fortes? Não está satisfeito com os meus cuidados?” –
Estou chegando ao fim. A doença percorre o meu corpo lentamente, mas não posso
reclamar da providência que o Criador tomou, enviando esse filho adotivo para
cuidar de mim.
Sem eira nem beira, abrigado num sistema previdenciário oficial
deficitário, com uma merreca de aposentadoria, não adianta lastimar, Saulo é o
senhor da razão:
“Eh velho, tristeza não paga dívida e do mundo nada se leva, ânimo!”
Autor: Rilvan
Batista de Santana
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