Se o termo
'travessias' pressupõe percurso, e percurso sugere mudança (num espaço e num
tempo), as mudanças, necessariamente,
ocorrem num objeto. Do objeto, pretendo aqui me ocupar da Literatura em Língua
Portuguesa, no tempo contemporâneo e em
seus vários espaços; fazer
observações, reflexões e questionamentos
sobre tendências e sinalizações
dessa produção literária (alguns exemplos), visando a contribuir para a idéia em foco: 'travessia'. A intenção é, assim, abordar, nos contextos
de expressões culturais em Língua Portuguesa, rotas (os caminhos expressionais) e imagens, ligadas às questões
dos seus respectivos imaginários. A
pretensão é de que a idéia de 'travessia' se faça visando a apontar a diversidade existente nas
várias literaturas dessa mesma Língua.
Ao
ocupar-me de aspectos
histórico-culturais, tematizados
na ficção contemporânea das várias Literaturas em
Língua Portuguesa, concentrar-me-ei nas questões suscitadas pelas condições de
ex-colonizador/ ex-colonizados dos seus falantes, sinalizando rotas e imagens,
respectivamente, em relação à produção literária de Portugal/ Brasil, Angola,
Moçambique e Cabo Verde. Na sequência
desse raciocínio, pelo caráter
multicultural para onde tal proposta aponta, considero
pertinente esclarecer o meu entendimento de cultura.
* Doutora (pós-doc) em Estudos Portgueses, pela
Universidade Nova de Lisboa
Profa Titular, aposentada DLA/UESC.
Para essas
considerações, tomo cultura não na visão clássica (herança de tradições, e
costumes), mas na perspectiva ampla, que não esbarra na história, mas se
alimenta também das vivências; melhor dizendo, que acrescenta vivências à
herança, isto significando "criatividade humana em ação"( Erikson,
1997, p. 33). Nesse raciocínio, pensar
cultura provoca pensar a identidade cultural, composta de múltiplas camadas e entendida
"como um senso de pertinência que é moldado pela intersecção de múltiplas
influências" (Kindler, 1997, p. 22). Pelo
processo relacional da identidade cultural, impõem-se as perguntas: quem somos, com quem nos
relacionamos?
Tomo, de Homi
Bhabha, a concepção de entre-lugar,
para situar o quê considero o foco
dessas discussões, ou seja, os "momentos ou processos que são produzidos na articulação de
diferenças culturais" (Bhabha, 1998, p. 20).
Consideradas as
diferenças histórico-culturais dos povos lusófonos (e não vou discutir aqui o
sentido 'colonizador' que o termo lusófono
suscita), existem pontos de relação entre os textos africanos, brasileiros,
asiáticos e portugueses?. Em se tratando
de questões do imaginário, além das
perspectivas de ex-colonizados,
ex-colonizador, questões míticas,
simbólicas ou mesmo
identitárias, que perpassam essas
literaturas, sugerem 'pontes' lusófonas?
Se consideramos que a história alimenta a ficção e essa, por sua
vez, influencia a história (Simões, 1998, p. 23), temos de considerar as condições históricas e
culturais diversas dos povos de Língua Portuguesa e, por conseguinte, das suas respectivas literaturas. Que 'travessias' podem ser apontadas nessas
literaturas?
1 - Dentro do foco proposto, um
primeiro aspecto a ser abordado é o
das "descobertas" portuguesas. Sobre o tema, ou suscitados pelas viagens
portuguesas, tem destaque uma profusão
de textos que tratam principalmente de questões identitárias. Em Portugal,
dentre outros, Lobo Antunes, ao escrever As Naus (1988), fala de viagens e conquistas portuguesas. Retoma os
personagens históricos de Os Lusíadas e,
intertextualizando a obra de Camões,
revê ironicamente a história.
Tomando o regresso das caravelas
do poeta luso, faz dele o regresso dos retornados das antigas colônias
portuguesas. Em O Conquistador (1990), Almeida Faria busca, também, discutir o
português e a sua identidade. Concebe o personagem Sebastião que, por seu lado
paródico, dessacraliza o mito nacional - o rei D Sebastião. Ambos fazem da
história "ponte" para refletir uma situação do presente de Portugal; refletir um país despossuído e, por
isso mesmo, também, um povo em revisão da sua própria identidade.
Sobre esse mesmo
foco das viagens portuguesas, na
intersecção Brasil/ Portugal,
hoje, impõem-se os 500 anos
(descoberta/ achamento) do Brasil pelos portugueses. Bem de acordo com
tal contexto, recentes experiências
recorrem a linguagens diversas - cinematográfica, musical, pictórica,
ficcional, em quadrinhos -, construindo
discursos próprios ou somando-se, complementando-se em reinterpretação dos textos fundadores da nação Brasil; dentre
todos, notadamente a Carta de Pero Vaz de Caminha.
No curso dessa
temática, entre a história e a ficção, a tendência de expressão jornalística
tem no brasileiro Eduardo Bueno um exemplo com três bem sucedidos livros
publicados: A Viagem do Descobrimento (1998), Náufragos, Traficantes e
Degredados (1998), Capitães do
Brasil (1999).
Ainda dentro do
tema descobrimento do Brasil, no que se refere às experiências mais recentes de
quadrinização, destaco o trabalho dos
portugueses José Pires e Nuno
Calado: Pedro Alvares Cabral: Ventos de Glória, Marés de Infortúnio (1998) e a publicação inovadora e original
dos brasileiros Henrique Campos Simões e Reinaldo Gonzaga: O
Achamento do Brasil - A Carta de Pero Vaz de Caminha a El-Rei D. Manuel (1999).
Nessas novas propostas, interessa a comunicabilidade dos textos e é
fundamental a observação da ideologia posta na fala dos personagens históricos,
reconfigurados. São perspectivas
que, resgatando a ambiência e a cultura da época, provocam a
reflexão sobre fatos e perfis, perpassados ao longo do tempo pela fala
oficial. Os códigos ideológicos, morais e gestuais das histórias em quadrinhos, sinalizadas pelos respectivos historiadores, e
asseguradas pela arte dos seus desenhistas no ambiente gráfico, traduzem o
comportamento de portugueses e índios e, consequentemente, as culturas branca e
indígena. Naturalmente, são óticas diferenciadas: a do ex-colonizador português
e a do ex-colonizado brasileiro. A primeira, admite a cobiça do governo
português e assegura a boa índole do povo; ressalta portugueses bons e, outros,
cobiçosos a serviço da coroa. A segunda, aponta a cobiça do colonizador, o seu
desrespeito à cultura indígena, e busca conduzir o leitor a uma reflexão sobre
cidadania. Se a História traz em si a aventura,
e essa é elemento inerente da HQ, as recentes experiências referidas primam por terem sabido aliar
as informações histórias a uma narração instigante, onde é evidente a
intenção autoral da discussão e reflexão ideológica. Então, para além dos
recursos dos quadrinhos, a ideologia que
subjaz, garante a reflexão crítica.
Ainda sobre o
mesmo aspecto, vale mencionar O Auto do Descobrimento - o romanceiro de
vagas descobertas, de Jorge de Souza Araújo (1997) que, ao tempo em que canta a chegada dos
portugueses às terras do Brasil, clama ao povo brasileiro a reflexão sobre a
sua brasilidade. O cenário é o litoral
de Porto Seguro, local da chegada da esquadra cabralina em 1500. Num primeiro plano, os atores são os portugueses e os índios. Mas são
também os negros, pois o texto se projeta
até à colonização e às capitanias
hereditárias, enfocando tempos por vir
em relação do presente histórico. Dessa
sorte, não se limita somente à reflexão sobre a
chegada de Cabral, como pode parecer à primeira vista, mas aos vários
descobrimentos do Brasil: pelos indígenas (os primeiros), pelos portugueses,
pelos negros; ultrapassa, dessa forma, o
mero fato histórico, para uma abrangência sócio-cultural, inclusive de
construção da identidade brasileira.
2 - Um outro
aspecto, dentro do foco proposto (ex-colonizador/ ex-colonizados), amplia a
relação para Portugal/ Brasil e
África e concentra-se na libertação dos países africanos. Como todos
lembramos, a revolução portuguesa do 25 de Abril de 1974 libertou os países africanos de Língua
Portuguesa e teve repercussões também no
Brasil (naquela época no auge do
ditadura de 64), já que para aqui vieram
muitos refugiados portugueses. O processo,
que teve início nos anos sessenta (com as conturbações provocadas pela
guerra colonial, pelo movimento estudantil, pelas questões agrárias, problemas
com a censura, a repressão, a condição das mulheres na sociedade), alcançou o seu momento de eclosão na revolução
dos Cravos (dos Capitães de Abril), comemorado em 1999.
A Revolução dos
Cravos é, então, considerada ano marco, a partir de quando a expressão de Língua Portuguesa tomou rumos
marcados. Portugal, por afinal livrar-se
de 46 anos de ditadura, pôde dar vazão à sua voz sufocada; os países
africanos, libertados, independentes,
na condição de ex-colonizados,
exprimem um imaginário que, embora povoado de lembranças e
influências brancas, traduz costumes
negros.
Bem a propósito
é que, dentre outras publicações alusivas à data, vejo a coleção Caminhos de Abril (1999), lançada pela Editora Caminho, em
comemoração ao 25º aniversário dos Cravos de Abril. Apresenta onze títulos, dez ficcionais e um
álbum fotográfico. Os autores que integram a coleção são oito portugueses
(Alexandre Pinheiro Torres, Alice
Vieira, Almeida Faria, Carlos Brito, Manuel Alegre, Maria Isabel Barreno, Mário de Carvalho e
Urbano Tavares Rodrigues), dois africanos
(o caboverdiano Germano Almeida e o moçambicano Mia Couto) e um brasileiro (Sebastião
Salgado). São, todos eles, escritores que vivenciaram o processo revolucionário
- portugueses ou filhos das ex-colônias.
Apegados à
memória do vivenciado, esses autores,
que revisitaram o 25 de Abril vinte e cinco anos depois, escreveram os seus
textos com um objetivo comum: em referência ao tempo anteriormente vivido, fazer
ver aos mais novos a importância da revolução.
Para isso, uns voltam-se ao
passado e, por outros focos temáticos,
relembram aquela época (Alexandre
Pinheiro Torres); ou aprofundam personagens antes referidas e retomadas
(Almeida Faria) ou, ainda, lembram experiências vivenciadas no tempo da
ditadura, como: a situação de submissão
das mulheres (Isabel Barreno), ou prisão
(Manuel Alegre) e fuga, às vezes
acontecida na culminância do dia tão esperado (Carlos Brito, Mário de Carvalho). Outros,
prendem-se ao espanto da liberdade dos primeiros momentos do 25 de Abril (Urbano Tavares). Os africanos apresentam a visão e o
sentimento do ex-colonizado (Germano Almeida, Mia Couto) em lembrança do dia D
e do que esse representou para o seu país; a certeza de que por si só ele não
bastou porque a descolonização foi outro processo. O brasileiro
apresenta tomadas fotográficas daqueles tempos. Finalmente, fazendo um percurso dos vários momentos do processo, Alice Vieira concebe
várias vozes, vivendo o agora; vozes que retomam o 25 de Abril, enfatizando os
ganhos que trouxe à vida quotidiana, em relação
à liberdade e aos costumes .
Esses textos,
produzidos em 1999, respeitadas as suas
diferenças autorais, têm em comum
a contenção, a clareza da linguagem, o humor
implícito ou explicitado, a ironia leve. A leveza da linguagem para a abordagem de temas tão graves; a rapidez
garantida na economia dos
adjetivos, na contenção do relato, e no tempo
circunscrito; o foco
assumido de forma direta. Esses
expedientes, certamente, são a chave para conquistar os leitores desses tempos de comunicação
tecnológica.
3 - Se, antes,
circunstâncias históricas e tecnológicas distanciaram os falantes da Língua
Portuguesa, hoje, respeitadas as
respectivas culturas, aproxima-as. O
mundo globalizado encurta distâncias.
Pelo viés da multiculturalidade e no sentido de cultura e identidade
cultural que aqui tomo (história e vivências), transitam alguns livros mais
recentes. Nesse panorama, por sua miscigenação, nenhum lugar é mais
propício em ambiência multicultural do que a Bahia. Desse espaço,
para exemplificar o entre-lugar
porposto, escolho o livro Itan dos
Mais-Velhos (1996), do baiano Ruy do Carmo Póvoas, babalorixá
de nome africano Catulembá. Nesse
texto ficcional, além de contar histórias em formas simples, passa
ensinamentos dos mais-velhos da cultura nagô, ensinamentos esses muitas
vezes presentes no dia-a-dia da cidade das vivências do
autor. São quatro odus,
ou seja, são quatro partes que compõem o livro. Cada odu é formado por três itan. São quatro velhos que contam suas
histórias. Cada um é responsável por um odu.
Cada um é o narrador das suas histórias.
Assim é a estrutura do livro.
Eles, os velhos, não têm pressa no seu contar . “É importante retardar o
final da história” diz o narrador do odu. Histórias retidas na memória, são repetidas e
repetidas. É assim a tradição nagô. No
livro do escritor brasileiro de etnia africana, há as presenças portuguesa,
africana e brasileira. À tradição histórica africana, somam-se as vivências da ambiência brasileira, onde
são percebidos hábitos brancos. Nesse
livro, o narrador diz que “os velhos apenas sabem contar”: histórias humanas, do cotidiano, não
convencionais, populares. São histórias cheias de mistérios, pois “onde não há
mistério, não há poder”. É um livro que exemplifica a multiculturalidade aqui mencionada, 'ponte' ficcional
da lusofonia .
4 -
Finalmente, não posso deixar de me
referir à relação dos ficcionistas lusófonos com o oficial
reconhecimento mundial da sua literatura. A estatura das três expressões
- portuguesa, brasileira, africana -, há muito vem sinalizando o prêmio Nobel
para um escritor de Língua Portuguesa.
Refiro-me ao nosso Jorge Amado -
patrimônio da Língua Portuguesa (conforme por vezes ouvi africanos e
portugueses nomearem o ficcionista
baiano) -, ao africano (angolano) Luandino Vieira e aos portugueses Miguel
Torga e José Saramago. Afinal, em 1998,
Saramago foi o ganhador do prêmio, que atraiu para a Língua Portuguesa o
reconhecimento mundial da sua
literatura. Destaque da Geração dos Cravos, tematizando
as suas questões, José Saramago o faz de forma singular e própria. Em
entrevista a Carlos Reis (Saramago, 1999, p. 5), falando da sua obra, ele diz:
o que há ali
são livros em que eu, como cidadão, como pessoa que sou, diante do tempo,
diante da morte, diante do amor, diante da idéia de Deus existente ou não,
diante de coisas que são fundamentais (e continuarão a ser fundamentais),
procuro colocar o conjunto de dúvidas, de inquietações e de interrogações que
me acompanham
.
De modo
geral, podemos dizer que parece haver, de uma ou outra forma, uma matafísica nos seus livros, traduzida,
inclusive, na problematização da verdade
e indagação do outro (presente, principalmente,
em Manual de Pintura e Caligrafia, Ano da Morte de Ricardo Reis, Jangada
de Pedra e Todos os Nomes). Pelo questionamento incessante dos seus personagens sobre o que
buscam, Saramago chega a admitir poderem eles ser alther egos do autor. Sobre
Saramago, por tudo quanto escreveu e
como escreveu, a justiça do prêmio Nobel é-lhe devida e justificada, inclusive recentemente
ratificada com a publicação de A Caverna (2000). Afora a regularidade da
sua produção, a maneira singular de
transformar o comum em essencial, no que tange ao mais profundo, dramático e
impronunciável do ser humano (Simões, 1998b);
a provocadora e instigante forma de repensar a história e de projetar o
futuro, fizeram-no merecedor do prêmio - o primeiro concedido a um escritor de
Língua Portuguesa.
De tudo quanto
disse, cabe, portanto, uma forma de
entender, atentando para as diferenças culturais
que envolvem os escritores de cada expressão, no que diz respeito às
Literaturas de Língua Portuguesa. Se o mundo literário dos falantes de Língua
Portuguesa, guardadas as respectivas
expressões culturais em suas identidades, impõe-se por sua língua comum,
premidos pelos tempos que exigem a comunicabilidade, a linguagem literária tem marcas que apontam para uma preocupação
especial com a leveza, rapidez e
visibilidade (Calvino, 1988).
O olhar ficcional desloca-se para
a re-visão da história; em mudança de
perspectiva, volta-se para as minorias sociais, para a descentralização do
poder e da fala do saber, para a subjetividade do narrador. Os gêneros tomam
novos ares, agora perpassados pela intertextualidade e ironia, tomados como
elementos estruturais. Tais experiências
temáticas e de discurso, se por um lado enriquecem as expressões de Língua
Portuguesa, por outro, agudizam as discussões sobre as questões
identitárias desses povos.
Por tudo
quanto foi dito, a idéia é de que as travessias literárias no mundo da Língua Portuguesa, mais do que de
tempo e espaço, são de interstícios.
Pontos de intersecção. Entre-lugares.
Fazem-se enquanto pontos diferenciadores das culturas, e se fazem enquanto
presenças provocadoras de novos signos
de identidade. Respeitadas as diferenças, também sinalizam uma
"sociedade" supra, multicultural, de uma mesma língua flor do
lácio sambódromo.
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