Não sei o que motivou um ilustre vereador de Ilhéus a elaborar projeto
de lei criando a lei que torna obrigatória para os alunos a oração do Pai nosso
nas dependências das escolas municipais . Creio até que tenha sido movido por
motivo nobre, por se tratar, possivelmente, de uma pessoa religiosa. Não creio
que tenha sido no sentido de ganhar notoriedade.
Se foi esse o sentido, quero dizer que a
notícia foi divulgada na folha de São Paulo e atravessou fronteiras, alcançando,
assim, o seu desiderato, chegando a ser mencionada numa sala de aula de doutorado em
Direito, em Buenos Aires. As pessoas ficaram perplexas e indagaram se o Brasil
não é um país laico. A argentina adotou em sua Constituição a religião católica
como sua religião oficial, mas nem por isso obriga as pessoas a orar o Pai
nosso nos espaços públicos , pois entende que, sem embargo da religião oficial
do Estado ser católica, as pessoas têm o direito de escolher a sua crença e
professar a sua fé, sejam elas quais forem, ou mesmo não ter qualquer crença.
Alguém obtemperou, citando um grande governador da Bahia, chamado Otávio
Mangabeira, que governou a Bahia no período de 1947 a 1951, também conhecido
por suas tiradas filosóficas, que ele teria dito:“mostre-me um
absurdo: na Bahia há precedentes” . Tentamos argumentar
que a Bahia de Ruy Barbosa, Castro Alves Josaphah Marinho, Milton Santos, João
Ubaldo Ribeiro, Caetano Veloso e tantos outros ilustres intelectuais também
produz coisas boas, seja na área do Direito, da prosa ou da poesia. O grapiúna
Jorge Amado, cujo centenário acontece no mês de agosto deste ano, é um dos
escritores brasileiros mais lidos no mundo. O saudoso escritor, que também foi
deputado federal, embora nascido em Ferradas, município de Itabuna, em 1912, foi
em Ilhéus que se inspirou para elaborar boa parte de suas obras que venceram as fronteiras de mais de 40
países.Ele é da Bahia. Aqui existe um patrimônio de valores culturais e
artísticos para se admirar e que nos obriga a revelar em toda a sua plenitude o orgulho de ser baiano. Dizem
alguns que a baianidade é um estado de espírito.
Não entendemos como uma lei deste jaez,
flagrantemente inconstitucional, passa pelo crivo da Comissão de Justiça da
Câmara de Vereadores de Ilhéus. E, pior, é sancionada pelo Poder Executivo
Municipal.
A chamada “idade das trevas” que atravessou
toda a Idade Média foi caracterizada pela grande influência da igreja católica
na monopolização do poder, misturando as ideias de delito e pecado,
sobressaindo-se o caráter religioso ou
divino do Poder. Esse foi um dos períodos mais violentos e autoritários da
história humanidade, cujos postulados estavam assentados nas bulas papais que
serviam de guia para os tribunais de inquisição na perseguição aos hereges. O
processo de laicização, que é precisamente a separação entre ciência e
religião, começa em 1440, com a obra de Nicolau de Cusa, denominada “ De Docta
ignorantia”, passando por Emanuel Kant( A crítica da razão pura) e culmina com
Nietizsche, com “ A morte de Deus”.
Entre nós, brasileiros, na época do
império, o Estado Brasileiro era oficialmente católico, entretanto a
Constituição da República do Brasil de 1891 já estabelecia a separação entre
Igreja e Estado. Muito embora a maioria das Constituições Brasileiras,
inclusive a de 1988, faça invocação a DEUS, não há dúvida de que o legislador
constituinte fez a opção por um Estado Democrático de Direito Laico, onde deve ser assegurada a cada cidadão, a
liberdade de consciência e de crença. Nesse sentido é explícito o inc. VI do
art. 5º de Nossa Constituição Federal, quando reza: “ é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado
o livre exercício dos cultos religiosos e garantida , na forma da lei,a
proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.
A exigibilidade de que os alunos rezem o Pai
nosso nas escolas municipais de Ilhéus, em nossa modesta opinião, conspurca,
viola essa liberdade de crença e de consciência assegurada constitucionalmente,
pois até mesmo para o aluno católico a oração como uma manifestação pura de fé,
não pode ser imposta, ou seja, não pode vir de fora para dentro, mas brotar de
dentro para fora. E como ficam os alunos que são agnósticos, ateus, fiéis do
judaísmo ou islamismo, ou de alguma religião que não utiliza a oração do Pai
nosso em seus rituais? Sem dúvida alguma, tal lei vai de encontro ao processo
de secularização e na contra-mão do Estado Democrático de Direito Laico. Não há
dúvida de que a maioria de nossa população é católica, como é também o
articulista deste artigo que reza o Pai nosso todo dia, em secreto, como manda
a Bíblia, mas daí a impor aos outros a
minha crença, obrigando a rezar uma oração na qual não acredita ou que não adota em seus rituais
é violar o seu direito à liberdade de crença, e voltar à idade das trevas ao
tentar novamente impor determinado postulado religioso a toda uma sociedade
livre e democrática.
Creio que a ideia não foi boa. Como afirmei
no exórdio, se foi para obter notoriedade
o nobre vereador alcançou o objetivo, mas de forma negativa. É como o
atacante DAVID do flamengo que, por mais gols que venha a fazer daqui por
diante, será sempre lembrado negativamente pelo gol inacreditável que deixou de
converter. Ilhéus, linda por natureza e
admirada pelo seu rico patrimônio histórico e cultural, necessita realmente de
muitas orações para que seus gestores não a maltratem mais e que DEUS na sua
infinita misericórdia a proteja de todo o mal, preparando-a para os novos
desafios na saúde, educação e no desenvolvimento urbano, principalmente, no seu
sistema de transporte tão caótico, cuja deficiência fica à mostra nos feriados e finais de semana.
Oremos por Ilhéus, mas deixemos que cada um professe livremente a sua fé, ou o
sagrado direito de não ter crença. Que DEUS nos proteja.
Marcos Bandeira é Juiz de Direito da Vara da
Infância e Juventude da Comarca de Itabuna, professor de Direito da UESC e
membro da Academia de Letras de Itabuna.